|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO
Uma política ingênua e errática
Na nossa diplomacia, cheia de distorções seletivas, a questão dos direitos humanos deixa de ter qualquer valor no trato com inimigos de Washington, os quais adulamos
OTAVIO FRIAS FILHO
DIRETOR DE REDAÇÃO
Durante muito tempo, a política externa brasileira foi negligenciada no debate público.
Como ocorre em toda nação
continental, a agenda interna
sempre esmagou a externa,
efeito acentuado, em nosso caso, pelo discreto relevo internacional do país. Aos poucos, esse
quadro começa a mudar.
Talvez seja nossa inexperiência no palco do mundo, combinada à afoiteza do governo Lula
em projetar a todo custo o peso
geopolítico que o país já alcançou, o que nos leva a cometer
equívocos em cascata e enveredar por um caminho temerário.
Veja-se, por exemplo, o caso
do Irã. Ao que tudo indica, a elite dirigente daquele país (incluída a facção oposicionista)
acredita que possuir armas nucleares seja um imperativo de
segurança nacional. Não é absurdo que pense assim. Os
americanos promovem atualmente duas guerras de invasão
nos países que fazem fronteira
com o Irã a oeste (Iraque) e a
leste (Afeganistão). A menos de
mil quilômetros de seus limites
territoriais, a distância entre
São Paulo e Brasília, o Irã tem
cinco vizinhos inamistosos e
dotados de capacidade militar
nuclear: Paquistão, Índia, China, Rússia e Israel.
Se essa premissa for aceita,
nada deterá o Irã (exceto, talvez, um desesperado ataque
preventivo de Israel). O mais
provável é que Israel e Irã convivam no futuro sob o "equilíbrio do terror nuclear", o mesmo mecanismo que deteve Estados Unidos e União Soviética
no passado e detém os arqui-inimigos Índia e Paquistão hoje. O que o Brasil tem a ganhar
ao se imiscuir em problema que
não é diretamente seu, numa
conjuntura geograficamente
remota e comercialmente pouco importante para nós?
Os Estados Unidos influem e
se intrometem nos conflitos do
Oriente Médio não para pavonear seu peso mundial, como
parecem supor nosso simplório
presidente e seu trêfego chanceler. Os EUA estão atolados
até o pescoço na região porque
sua economia é dependente do
petróleo local (não é o caso da
nossa) e sua comunidade judaica exerce peso desproporcional
nas eleições americanas (diferente de novo do Brasil, onde
comunidades de origem judaica e árabe têm expressão equilibrada e convivem de fato).
Não existe razão de política
externa para que nossa atitude
perante a complexa, quase insolúvel, contenda entre israelenses e palestinos seja outra
que não uma equidistância comedida, sempre favorável à não
violência e à negociação direta
entre as partes. Retomar esse
contato direto, aliás, é hoje o
ponto crucial naquele conturbado trecho do globo. Nossa
"diplomacia do futebol" tem
pouco a fazer ali, exceto passar
ridículo.
Numa entrevista recente, o
novo embaixador dos EUA no
Brasil, Thomas Shannon, disse
algo significativo, o que é inusitado entre diplomatas. Referindo-se às relações entre nossos
dois países, constatou que "vamos começar a nos esbarrar
por aí". Shannon aludia ao fato
de que o aumento do peso econômico e comercial do Brasil
aumenta sua influência externa, irradia seus interesses e o
expõe a crescentes áreas de
atrito com outros países relevantes, desde logo os próprios
Estados Unidos.
Em outras palavras, não precisamos buscar sarnas para nos
coçar, elas virão natural e infelizmente como decorrência de
nossa projeção maior na geopolítica mundial. Logo teremos de
enfrentar decisões realmente
difíceis.
É provável, por exemplo, que
o Brasil venha a ser um dos cinco entes soberanos a predominar no planeta antes de meados
do século, junto com a China,
os Estados Unidos, a Índia e a
Europa. Continuaremos a ser o
único a prescindir de armas nucleares como recurso dissuasivo? O ex-ministro Rubens Ricupero tem uma bela argumentação em defesa dessa originalidade, talvez até como contribuição da cultura brasileira ao
futuro dos povos.
Mesmo no âmbito de uma
perspectiva pacifista, porém,
que é da nossa tradição, abdicar
de arma atômica implica como
contrapartida a obrigação de
dotar o país de recursos militares convencionais muito mais
onerosos e destrutivos do que o
aparato atual. São questões graves como essa que merecem
debate profundo, mais que nossa ingênua, felizmente inócua,
aparição no Oriente Médio ou
nossa desastrada e igualmente
inócua ingerência nos assuntos
internos de Honduras.
Toda política externa deve
combinar o interesse egoísta do
próprio país com um elenco de
valores universais (essencialmente, respeito aos direitos
humanos e à autodeterminação
dos povos). Ela será tanto mais
sólida e respeitável quanto
mais os dois aspectos se harmonizarem sem grande contradição. O que estamos fazendo é uma política errática, cheia
de distorções seletivas, de modo que a questão dos direitos
humanos, por exemplo, deixa
de ter qualquer valor no trato
com inimigos de Washington,
os quais adulamos para sermos
vistos como "independentes".
Vamos confrontar os Estados Unidos, sim, e cada vez
mais. Mas vamos fazê-lo quando for relevante para o Brasil,
não para realizar as fantasias
ideológicas da militância que
aplaude o presidente Lula e seu
chanceler Celso Amorim, o
qual errou mais uma vez quando se filiou no ano passado ao
PT. Chanceler não deveria ter
partido. Parodiando Clemenceau (1841-1929), a diplomacia
é assunto sério demais para ser
relegado a diplomatas e a ideólogos partidários.
Texto Anterior: Israelense propõe que Brasil medeie paz com Síria Próximo Texto: Prestígio universal permite a Brasil ser mediador, diz premiê palestino Índice
|