São Paulo, domingo, 16 de agosto de 1998

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Reuters - 23.out.96
Monica Lewinsky (à esq.) sorri para Clinton durante encontro dos dois


ARTIGO
Presidente, apesar dos privilégios do cargo, terá de depor como um cidadão comum, em derrota para a Casa Branca
Clinton esfacela o poder da Presidência

MARY DEJEVSKY
do "The Independent", em Washington

Vestindo terno escuro, o presidente dos EUA, Bill Clinton, fez na quinta-feira o que muitos de seus predecessores também tiveram de fazer: ele presidiu a cerimônia de retorno ao país de norte-americanos mortos no exterior. Tudo correu como devia. Como em todas as ocasiões semelhantes do passado, as palavras de Clinton foram exatamente aquelas que os americanos esperam de seu presidente.
A maneira como os americanos enxergam seu presidente parece inocente e arcaica. Patriotismo e liderança nacional, como religião, seguem intactas aqui no Novo Mundo. Pessoas comuns hasteiam a bandeira nacional em seus jardins. Eles respeitam o presidente e a Presidência.
É por essa razão que a queda de Bill Clinton -que nunca fingiu ser perfeito- seria tão dura para os Estados Unidos.
Corte agora para aquele vestido. Será mesmo possível que um presidente que cumpre tão admiravelmente os requisitos para a função seja derrubado por algo tão espalhafatoso, de tanto mau gosto como uma mancha no vestido de uma jovem?
Dependendo do testemunho de Clinton, amanhã, isso não só é possível -especialmente se comprovado que a mancha é o que se afirma-, mas inevitável.
Muitos em Washington, e ainda mais gente no país todo, se recusam até a imaginar essa possibilidade. Eles aderem à idéia de que "sexo" é diferente. O presidente pode ter "pecado", dizem eles, mas não cometeu crime nenhum. Mentir sobre sexo não deveria ser visto como falso testemunho. No fundo dessa visão surge de forma flagrante a linha primitiva de pensamento de que quanto mais viril o presidente se apresentar, mais respeitada será sua liderança.
Dentre aqueles que condenariam o presidente, os mais tímidos até agora são os moralistas de direita, para os quais um pecado não arrependido constituiria um empecilho para o posto mais alto. Tal visão teria desqualificado muitos dos mais distintos presidentes dos EUA, mas tem certa consistência.
Mais vociferantes são os legalistas, que insistem que falso testemunho é falso testemunho, algo único e indivisível. Se o presidente mentiu sob juramento, então deve partir. Não importa para eles se a mentira é proveniente de um processo civil (como era o processo movido por Paula Jones por assédio sexual), se veio de uma acusação julgada improcedente, se o processo foi encerrado (como o de Paula Jones), ou se o assunto envolvido é sexo. O que aconteceria, perguntam os legalistas, se ninguém levasse a sério o julgamento? Toda a base do sistema legal seria destruída. Esse caminho leva ao impeachment.
O discurso mais contundente -enquanto Clinton se prepara para se tornar o primeiro presidente a testemunhar a um juri de inquérito para defender sua conduta- é o dos constitucionalistas. Eles argumentam que, aconteça o que acontecer, caso seja provado ou não que um pecado foi cometido ou uma lei desrespeitada, Clinton já diminuiu o sentido da Presidência.
Sua opinião é de que, parte por culpa própria, e parte não, Clinton deve aos seus sucessores a responsabilidade de assegurar o poder da Presidência. O início do esfacelamento desse poder, afirmam, foi a decisão da Suprema Corte no ano passado, no caso Paula Jones, que abriu caminho para que um presidente em exercício pudesse ser julgado em casos civis. A decisão, contestada pelos advogados presidenciais até os últimos recursos, criou toda a epopéia legal que leva agora Clinton a ter de depor no caso Monica Lewinsky.
No percurso, a equipe de advogados de Clinton perdeu em uma sucessão de embates legais, que contribuíram para diminuir os poderes presidenciais. As questões claramente ambíguas, deixadas deliberadamente dessa maneira pelos presidentes anteriores, agora foram bem definidas.
Um guarda-costas presidencial pode ser chamado a depor caso haja suspeitas de que uma lei foi desrespeitada. Advogados empregados pela Casa Branca, e não pelo próprio mandatário, devem seus serviços em primeiro lugar aos contribuintes. Seu aconselhamento ao presidente não deverá ser confidencial. Um presidente pode estar sujeito a intimações para comparecer na corte, e o princípio de "privilégio executivo", que torna matéria confidencial as conversas do presidente com seus assessores, ficou restrito aos assuntos de segurança nacional.
Em resumo, um presidente assalariado pelo Estado, que tem uma casa majestosa, um avião privado, centenas de assessores e poder para arrasar o mundo não tem mais privilégios que um cidadão comum caso seja suspeito de ter ferido a lei.
Em alguns pontos, sua posição é ainda pior, devido a fatores políticos. Se amanhã, Clinton quiser exercer seu direito de cidadão de permanecer em silêncio -para não incriminar a si próprio (optar pela quinta emenda)-, o mundo todo saberia, e ele seria visto internacionalmente como culpado.
Nos últimos sete meses da saga do caso Lewinsky, Clinton testou os limites da Presidência, moralmente, legalmente e constitucionalmente. E os norte-americanos têm sido generosos. Eles gostam do homem. Ele é charmoso e convincente. Ele mantém a áurea do cargo, e as pessoas respeitam isso.
Só agora, quando o relógio se aproxima do momento do testemunho de Clinton, os EUA parecem divididos entre duas imagens do presidente: ele é como todos, falível, perdoável, mas sujeito à lei, ou ele está acima de julgamento? As cortes decretaram que o presidente é um cidadão, nem mais nem menos. Mas, no que se refere a Bill Clinton, as pessoas ainda pensam de forma diferente.
Enquanto muitos chefes são demitidos sumariamente por suas aventuras com funcionárias iniciantes, o presidente dos EUA pode entreter uma jovem estagiária em seu gabinete e impulsionar sua carreira impunemente.
Clinton pode continuar assim. Os norte-americanos o tratam como um ser superior, um super-homem, para quem as regras feitas para os humanos não valem. Eles respeitam a maneira como ele conduz o país, e ele corresponde com performances das quais o país se orgulha.
Enquanto a maré popular e os assuntos da lei estiverem em desacordo, Clinton estará provavelmente salvo. Mas, a partir do momento em que a opinião pública concordar com a lei -o que pode ocorrer depois de amanhã-, Clinton estará vulnerável, se não acabado.
Afinal, ele pode não ter mentido sob juramento, nem ferido a lei. Mas ele desrespeitou as regras, aquelas que se espera que os cidadãos comuns observem, regras que abraçou publicamente.
Se eu fosse americana e seguidora de Clinton, uma característica dele testaria minha lealdade. Não a redução do poder da Presidência, nem as artimanhas com a lei, mas a mesma questão que acompanha o mandato de Clinton desde o início: o seu caráter.


Tradução de Marcelo Starobinas






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