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Reuters - 23.out.96
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Monica Lewinsky (à esq.) sorri para Clinton durante encontro dos dois
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ARTIGO
Presidente, apesar dos privilégios do cargo, terá de depor como um cidadão comum, em derrota para a Casa Branca
Clinton esfacela o poder da Presidência
MARY DEJEVSKY
do "The Independent", em Washington
Vestindo terno escuro, o presidente dos EUA, Bill Clinton, fez na
quinta-feira o que muitos de seus
predecessores também tiveram de
fazer: ele presidiu a cerimônia de
retorno ao país de norte-americanos mortos no exterior. Tudo correu como devia. Como em todas as
ocasiões semelhantes do passado,
as palavras de Clinton foram exatamente aquelas que os americanos esperam de seu presidente.
A maneira como os americanos
enxergam seu presidente parece
inocente e arcaica. Patriotismo e
liderança nacional, como religião,
seguem intactas aqui no Novo
Mundo. Pessoas comuns hasteiam
a bandeira nacional em seus jardins. Eles respeitam o presidente e
a Presidência.
É por essa razão que a queda de
Bill Clinton -que nunca fingiu
ser perfeito- seria tão dura para
os Estados Unidos.
Corte agora para aquele vestido.
Será mesmo possível que um presidente que cumpre tão admiravelmente os requisitos para a função seja derrubado por algo tão espalhafatoso, de tanto mau gosto
como uma mancha no vestido de
uma jovem?
Dependendo do testemunho de
Clinton, amanhã, isso não só é
possível -especialmente se comprovado que a mancha é o que se
afirma-, mas inevitável.
Muitos em Washington, e ainda
mais gente no país todo, se recusam até a imaginar essa possibilidade. Eles aderem à idéia de que
"sexo" é diferente. O presidente
pode ter "pecado", dizem eles,
mas não cometeu crime nenhum.
Mentir sobre sexo não deveria ser
visto como falso testemunho. No
fundo dessa visão surge de forma
flagrante a linha primitiva de pensamento de que quanto mais viril
o presidente se apresentar, mais
respeitada será sua liderança.
Dentre aqueles que condenariam o presidente, os mais tímidos
até agora são os moralistas de direita, para os quais um pecado não
arrependido constituiria um empecilho para o posto mais alto. Tal
visão teria desqualificado muitos
dos mais distintos presidentes dos
EUA, mas tem certa consistência.
Mais vociferantes são os legalistas, que insistem que falso testemunho é falso testemunho, algo
único e indivisível. Se o presidente
mentiu sob juramento, então deve
partir. Não importa para eles se a
mentira é proveniente de um processo civil (como era o processo
movido por Paula Jones por assédio sexual), se veio de uma acusação julgada improcedente, se o
processo foi encerrado (como o de
Paula Jones), ou se o assunto envolvido é sexo. O que aconteceria,
perguntam os legalistas, se ninguém levasse a sério o julgamento?
Toda a base do sistema legal seria
destruída. Esse caminho leva ao
impeachment.
O discurso mais contundente
-enquanto Clinton se prepara
para se tornar o primeiro presidente a testemunhar a um juri de
inquérito para defender sua conduta- é o dos constitucionalistas.
Eles argumentam que, aconteça o
que acontecer, caso seja provado
ou não que um pecado foi cometido ou uma lei desrespeitada, Clinton já diminuiu o sentido da Presidência.
Sua opinião é de que, parte por
culpa própria, e parte não, Clinton
deve aos seus sucessores a responsabilidade de assegurar o poder da
Presidência. O início do esfacelamento desse poder, afirmam, foi a
decisão da Suprema Corte no ano
passado, no caso Paula Jones, que
abriu caminho para que um presidente em exercício pudesse ser julgado em casos civis. A decisão,
contestada pelos advogados presidenciais até os últimos recursos,
criou toda a epopéia legal que leva
agora Clinton a ter de depor no caso Monica Lewinsky.
No percurso, a equipe de advogados de Clinton perdeu em uma
sucessão de embates legais, que
contribuíram para diminuir os
poderes presidenciais. As questões
claramente ambíguas, deixadas
deliberadamente dessa maneira
pelos presidentes anteriores, agora foram bem definidas.
Um guarda-costas presidencial
pode ser chamado a depor caso
haja suspeitas de que uma lei foi
desrespeitada. Advogados empregados pela Casa Branca, e não pelo
próprio mandatário, devem seus
serviços em primeiro lugar aos
contribuintes. Seu aconselhamento ao presidente não deverá ser
confidencial. Um presidente pode
estar sujeito a intimações para
comparecer na corte, e o princípio
de "privilégio executivo", que
torna matéria confidencial as conversas do presidente com seus assessores, ficou restrito aos assuntos de segurança nacional.
Em resumo, um presidente assalariado pelo Estado, que tem uma
casa majestosa, um avião privado,
centenas de assessores e poder para arrasar o mundo não tem mais
privilégios que um cidadão comum caso seja suspeito de ter ferido a lei.
Em alguns pontos, sua posição é
ainda pior, devido a fatores políticos. Se amanhã, Clinton quiser
exercer seu direito de cidadão de
permanecer em silêncio -para
não incriminar a si próprio (optar
pela quinta emenda)-, o mundo
todo saberia, e ele seria visto internacionalmente como culpado.
Nos últimos sete meses da saga
do caso Lewinsky, Clinton testou
os limites da Presidência, moralmente, legalmente e constitucionalmente. E os norte-americanos
têm sido generosos. Eles gostam
do homem. Ele é charmoso e convincente. Ele mantém a áurea do
cargo, e as pessoas respeitam isso.
Só agora, quando o relógio se
aproxima do momento do testemunho de Clinton, os EUA parecem divididos entre duas imagens
do presidente: ele é como todos,
falível, perdoável, mas sujeito à
lei, ou ele está acima de julgamento? As cortes decretaram que o
presidente é um cidadão, nem
mais nem menos. Mas, no que se
refere a Bill Clinton, as pessoas
ainda pensam de forma diferente.
Enquanto muitos chefes são demitidos sumariamente por suas
aventuras com funcionárias iniciantes, o presidente dos EUA pode entreter uma jovem estagiária
em seu gabinete e impulsionar sua
carreira impunemente.
Clinton pode continuar assim.
Os norte-americanos o tratam como um ser superior, um super-homem, para quem as regras
feitas para os humanos não valem.
Eles respeitam a maneira como ele
conduz o país, e ele corresponde
com performances das quais o
país se orgulha.
Enquanto a maré popular e os
assuntos da lei estiverem em desacordo, Clinton estará provavelmente salvo. Mas, a partir do momento em que a opinião pública
concordar com a lei -o que pode
ocorrer depois de amanhã-,
Clinton estará vulnerável, se não
acabado.
Afinal, ele pode não ter mentido
sob juramento, nem ferido a lei.
Mas ele desrespeitou as regras,
aquelas que se espera que os cidadãos comuns observem, regras
que abraçou publicamente.
Se eu fosse americana e seguidora de Clinton, uma característica
dele testaria minha lealdade. Não a
redução do poder da Presidência,
nem as artimanhas com a lei, mas
a mesma questão que acompanha
o mandato de Clinton desde o início: o seu caráter.
Tradução de Marcelo Starobinas
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