São Paulo, domingo, 17 de junho de 2007

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Sucessão de erros coletivos permitiu a tomada de Gaza

Para especialistas, Israel, EUA e UE ajudaram a potencializar fracasso palestino

Mesmo após eleição, Hamas nunca deixou por inteiro o papel de opositor, enquanto Fatah jamais aceitou abrir mão do aparato de poder

MARCELO NINIO
DA REDAÇÃO

Nenhum dos personagens do drama que se desenrolou nos últimos 17 meses na faixa de Gaza e ganhou um epílogo sangrento nesta semana está isento de culpa. A opinião é dos analistas ouvidos pela Folha, que atribuíram a uma sucessão de erros a explosão de violência que resultou na divisão política dos territórios palestinos: Gaza passou a ser dominada pelos radicais islâmicos do Hamas e a Cisjordânia ficou com os nacionalistas laicos do Fatah.
Palestinos, israelenses, americanos e europeus, todos têm sua parcela de responsabilidade na criação do cenário para a luta fratricida travada até quinta-feira, quando o Hamas tomou o poder em Gaza.
O primeiro obstáculo foi a própria estrutura da Autoridade Nacional Palestina (ANP). Criado pelos acordos de Oslo, que em 1994 estabeleceram a autonomia palestina em Gaza e nas principais cidades da Cisjordânia, o governo palestino se confundia com a estrutura do Fatah, a facção liderada por Iasser Arafat, e não previa a transferência de poder.
A surpreendente vitória do Hamas nas eleições de janeiro de 2006, que pôs fim a quatro décadas de hegemonia do Fatah na política palestina, criou uma situação híbrida, pois nenhuma das duas facções ficou totalmente no poder -nem fora dele. Embora eleito em um processo resultante do acordo com Israel, o Hamas se recusou a reconhecer o direito de existência do Estado judeu.
O Fatah, por sua vez, não se desfez de seus tentáculos no poder, sobretudo no aparato de segurança. Continuou armado, o que estimulou o rival a criar uma força de segurança própria. Além de garantir o poderio militar dos dois grupos, esses Exércitos paralelos serviam como fontes de emprego, uma valiosa ferramenta política na empobrecida faixa de Gaza.

Alternativa
"O Hamas jamais deixou de agir como oposição e o Fatah continuou se comportando como governo", disse à Folha o especialista em assuntos palestinos Avraham Sela, da Universidade de Jerusalém. "Os líderes do Hamas nunca consideraram a Autoridade Nacional Palestina legítima. Mesmo após vencerem as eleições, continuaram se colocando como uma alternativa a ela."
A vitória do Hamas criou uma esfinge de duas cabeças. A Presidência, eleita em outra votação um ano antes, continuou nas mãos do sucessor de Arafat na liderança do Fatah, Mahmoud Abbas, que manteve os contatos com Israel. Num dos seus primeiros anúncios após a vitória do Hamas, Abbas disse que os órgãos de segurança continuariam com o Fatah. Na prática, isso significava uma recusa em transferir ao Hamas o poder ganho pelos fundamentalistas nas urnas.
Ao mesmo tempo, Israel congelava o repasse dos impostos que recolhe em nome da ANP e Estados Unidos e União Européia aplicavam um boicote financeiro ao governo recém-eleito, para punir a recusa do Hamas em respeitar os acordos assinados pelo Fatah.
"Não se pode apoiar a democracia só quando o resultado é favorável", disse à Folha o médico e ativista político palestino Iyad Elsarraj, uma das figuras públicas mais respeitadas de Gaza. Para Elsarraj, o boicote castigou a população palestina e polarizou ainda mais a política local -o Fatah continuou recebendo ajuda de Israel e dos EUA, o que deu motivos para o Hamas acusá-lo de traidor.
Com toda a pressão internacional e a influência da ocupação israelense, contudo, o violento choque entre Hamas e Fatah tem sua própria dinâmica, lembra Rob Barret, do Instituto de Oriente Médio, em Washington. Segundo ele, as origens dessa rivalidade não são só políticas, mas sociais.
O Hamas começou como um grupo islâmico de assistência aos necessitados, nos anos 80, antes de se voltar para o terrorismo contra Israel, na década seguinte. "Ele representa a ascensão das classes sociais mais baixas. Seu triunfo em Gaza ameaça pôr fim à elite laica e ocidentalizada que dominou o movimento palestino desde o seu nascimento," diz Barret.
Diferenças ideológicas e disputas locais entre clãs aumentaram a distância entre os dois grupos. Elsarraj, que dirige o programa de saúde mental de Gaza, cita ainda um elemento psicológico na luta intestina. "Os palestinos passaram anos perdendo guerras para Israel", diz o psiquiatra. "Com a retirada israelense de Gaza, a energia que era usada contra o inimigo comum voltou-se contra a própria comunidade."


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