|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Sucessão de erros coletivos permitiu a tomada de Gaza
Para especialistas, Israel, EUA e UE ajudaram a potencializar fracasso palestino
Mesmo após eleição, Hamas nunca deixou por inteiro o papel de opositor, enquanto Fatah jamais aceitou abrir mão do aparato de poder
MARCELO NINIO
DA REDAÇÃO
Nenhum dos personagens do
drama que se desenrolou nos
últimos 17 meses na faixa de
Gaza e ganhou um epílogo sangrento nesta semana está isento de culpa. A opinião é dos analistas ouvidos pela Folha, que
atribuíram a uma sucessão de
erros a explosão de violência
que resultou na divisão política
dos territórios palestinos: Gaza
passou a ser dominada pelos
radicais islâmicos do Hamas e a
Cisjordânia ficou com os nacionalistas laicos do Fatah.
Palestinos, israelenses, americanos e europeus, todos têm
sua parcela de responsabilidade na criação do cenário para a
luta fratricida travada até quinta-feira, quando o Hamas tomou o poder em Gaza.
O primeiro obstáculo foi a
própria estrutura da Autoridade Nacional Palestina (ANP).
Criado pelos acordos de Oslo,
que em 1994 estabeleceram a
autonomia palestina em Gaza e
nas principais cidades da Cisjordânia, o governo palestino
se confundia com a estrutura
do Fatah, a facção liderada por
Iasser Arafat, e não previa a
transferência de poder.
A surpreendente vitória do
Hamas nas eleições de janeiro
de 2006, que pôs fim a quatro
décadas de hegemonia do Fatah na política palestina, criou
uma situação híbrida, pois nenhuma das duas facções ficou
totalmente no poder -nem fora dele. Embora eleito em um
processo resultante do acordo
com Israel, o Hamas se recusou
a reconhecer o direito de existência do Estado judeu.
O Fatah, por sua vez, não se
desfez de seus tentáculos no
poder, sobretudo no aparato de
segurança. Continuou armado,
o que estimulou o rival a criar
uma força de segurança própria. Além de garantir o poderio militar dos dois grupos, esses Exércitos paralelos serviam
como fontes de emprego, uma
valiosa ferramenta política na
empobrecida faixa de Gaza.
Alternativa
"O Hamas jamais deixou de
agir como oposição e o Fatah
continuou se comportando como governo", disse à Folha o
especialista em assuntos palestinos Avraham Sela, da Universidade de Jerusalém. "Os líderes do Hamas nunca consideraram a Autoridade Nacional
Palestina legítima. Mesmo
após vencerem as eleições,
continuaram se colocando como uma alternativa a ela."
A vitória do Hamas criou
uma esfinge de duas cabeças. A
Presidência, eleita em outra
votação um ano antes, continuou nas mãos do sucessor de
Arafat na liderança do Fatah,
Mahmoud Abbas, que manteve
os contatos com Israel. Num
dos seus primeiros anúncios
após a vitória do Hamas, Abbas
disse que os órgãos de segurança continuariam com o Fatah.
Na prática, isso significava uma
recusa em transferir ao Hamas
o poder ganho pelos fundamentalistas nas urnas.
Ao mesmo tempo, Israel
congelava o repasse dos impostos que recolhe em nome da
ANP e Estados Unidos e União
Européia aplicavam um boicote financeiro ao governo recém-eleito, para punir a recusa
do Hamas em respeitar os
acordos assinados pelo Fatah.
"Não se pode apoiar a democracia só quando o resultado é
favorável", disse à Folha o médico e ativista político palestino Iyad Elsarraj, uma das figuras públicas mais respeitadas
de Gaza. Para Elsarraj, o boicote castigou a população palestina e polarizou ainda mais a política local -o Fatah continuou
recebendo ajuda de Israel e dos
EUA, o que deu motivos para o
Hamas acusá-lo de traidor.
Com toda a pressão internacional e a influência da ocupação israelense, contudo, o violento choque entre Hamas e
Fatah tem sua própria dinâmica, lembra Rob Barret, do Instituto de Oriente Médio, em
Washington. Segundo ele, as
origens dessa rivalidade não
são só políticas, mas sociais.
O Hamas começou como um
grupo islâmico de assistência
aos necessitados, nos anos 80,
antes de se voltar para o terrorismo contra Israel, na década
seguinte. "Ele representa a ascensão das classes sociais mais
baixas. Seu triunfo em Gaza
ameaça pôr fim à elite laica e
ocidentalizada que dominou o
movimento palestino desde o
seu nascimento," diz Barret.
Diferenças ideológicas e disputas locais entre clãs aumentaram a distância entre os dois
grupos. Elsarraj, que dirige o
programa de saúde mental de
Gaza, cita ainda um elemento
psicológico na luta intestina.
"Os palestinos passaram anos
perdendo guerras para Israel",
diz o psiquiatra. "Com a retirada israelense de Gaza, a energia
que era usada contra o inimigo
comum voltou-se contra a própria comunidade."
Texto Anterior: Fatah neutraliza o Hamas na Cisjordânia Próximo Texto: Palestinos usam blogs como válvula de escape Índice
|