São Paulo, domingo, 17 de novembro de 2002

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FÉ NO VOTO

Para estudioso americano, assim como o Vaticano deixou de condenar a democracia para apoiá-la, islã pode mudar

"Islã pode caminhar à democratização"

DA REDAÇÃO

Assim como no Ocidente cristão, onde a democracia foi o resultado de um longo processo histórico, o mundo islâmico pode passar por uma transição dos atuais regimes autoritários rumo a sistemas políticos pluralistas.
É o que diz John L. Esposito, professor de religião e relações internacionais da Universidade Georgetown e importante pesquisador do islamismo político.
Na visão de Esposito, o fortalecimento de partidos moderados muçulmanos e a distinção entre estes e os grupos extremistas poderiam estimular a democratização no Oriente Médio. Leia trechos da entrevista que ele concedeu à Folha, por telefone.
(MARCELO STAROBINAS)

Folha - Qual o significado da vitória do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) na Turquia?
John Esposito -
O AKP mostrou como um partido inicialmente islâmico pode ampliar suas bases. Agora, é identificado como um partido nacional, muçulmano-democrata, a exemplo dos partidos democrata-cristãos. Busca incluir tanto islâmicos quanto não-islâmicos e pessoas seculares. É um partido que se projetou falando a todo o povo e apresentando uma agenda política e econômica.
Teremos de ver se esse partido pode provar que é o que diz ser: pluralista e inclusivo. Se isso ocorrer, dará um exemplo de como a política muçulmana é capaz de ser diversificada e pronta para responder às diferentes realidades de cada país.

Folha - Qual é a plataforma de um partido "muçulmano-democrata"?
Esposito -
O que eles dizem é o seguinte: a Turquia é um país muçulmano e, assim, ser um partido nacional turco é ser um partido muçulmano. Mas se distinguem dos partidos militantes islâmicos, ao dizer: "As pessoas que votam em nós representam a diversidade que existe na Turquia, aqueles que são religiosos e os que não são". O seu objetivo é ser um partido capaz de responder aos desafios políticos, econômicos e sociais do país, e não ser um partido religioso que busca estabelecer uma república islâmica.
Da mesma maneira, os partidos democrata-cristãos representam a herança e a história cristãs, mas vêem a si mesmos como partidos nacionais, que não advogam por um Estado cristão.

Folha - Seria, portanto, um partido muçulmano que aceita a separação entre igreja e Estado?
Esposito -
Sim. Eles acreditam num secularismo do tipo que encontramos nos EUA e em muitas partes da Europa. É importante destacar que o secularismo e a sua separação entre Estado e igreja não é anti-religioso.
Muitas vezes, a elite secular da Turquia achou que ser laico fosse ser contra a religião. Na Europa, a noção de secularismo é a de que todas as religiões podem existir e as pessoas, acreditando ou não em alguma fé, possuem a mesma cidadania. Isso é o que esse partido turco diz querer representar.

Folha - Outros países da região poderiam imitar esse modelo de democracia muçulmana?
Esposito -
Isso depende da história e da natureza de cada Estado. Há, porém, possibilidade de um processo similar em locais como o Egito, a Síria ou o Líbano.
Assim como pode haver diversidade entre partidos seculares, pode haver diferentes formas de partidos que queiram incluir a religião em sua identidade.

Folha - O surgimento, no Egito ou na Jordânia, de movimentos como o AKP turco poderia servir como meio-termo entre os regimes autoritários e os extremistas islâmicos?
Esposito -
Sim. Esse tipo de partido seria uma alternativa mais confortável em países onde há minorias cristãs ou pessoas seculares. Também creio que partidos islâmicos mais religiosos, se forem pluralistas em termos políticos e religiosos, possam funcionar numa sociedade muçulmana.

Folha - Os principais movimentos políticos islâmicos do Oriente Médio estão se tornando mais radicais ou mais moderados e pragmáticos?
Esposito -
Não os vejo como radicais no sentido de serem violentos ou extremistas. A Irmandade Muçulmana, no Egito e na Jordânia, tenta criar um apelo político amplo e se tornar mais pluralista.
As dificuldades, entretanto, não resultam apenas do perigo do extremismo religioso. Por muito tempo, a dificuldade tem sido o autoritarismo estatal. Muitos desses governos não são autoritários só porque tentam proteger o Estado da religião. São autoritários porque buscam se proteger de qualquer oposição significativa.
A realidade nas últimas décadas tem sido que os principais partidos de oposição têm a religião como base. É por isso que esses regimes se concentram na questão dos partidos religiosos.
O perigo é quando esses regimes não distinguem movimentos extremistas violentos, que devem ser reprimidos, de partidos religiosos "mainstream", que funcionam dentro da sociedade. O governo autoritário apresenta todos eles como uma coisa só.

Folha - A guerra ao terrorismo pode levar grupos radicais a moderar posições para não virarem alvos?
Esposito -
Nos últimos dez ou 15 anos vimos partidos muçulmanos participando de eleições na região e ocupando cadeiras no Parlamento. O perigo é se a guerra ao terrorismo se tornar uma desculpa para os regimes autoritários reprimirem qualquer tipo de oposição. A guerra ao terrorismo deveria ter como alvo grupos extremistas violentos, e não os partidos muçulmanos. Se a distinção não for feita, ela poderia criar mais extremistas do que eliminá-los.

Folha - O que é melhor para os EUA: apoiar regimes autoritários ou grupos islâmicos moderados?
Esposito -
Os EUA estariam melhor se tentassem pressionar os governos aliados a abrir seus sistemas políticos. A verdadeira questão é se esses governos vão ou não deixar para trás a cultura do autoritarismo e se dirigir rumo a uma cultura com base em ampla participação política -sejam partidos seculares ou religiosos.
Os princípios básicos dos EUA ao lidar com a questão devem ser o apoio ao direito à autodeterminação e à democratização a quem quer que obtenha a liderança dessas sociedades. Se partidos alternativos emergirem participando do sistema, via eleições, os EUA devem defender seus princípios de autodeterminação.

Folha - O que o sr. acha do argumento que sustenta que o islamismo e a democracia não combinam?
Esposito -
Como qualquer religião -o catolicismo, por exemplo-, o islamismo é capaz de avançar de um passado em que os reinados eram baseados em direito divino e fazer uma transição. Por muitas décadas, o Vaticano condenou a democracia. Tudo isso mudou nas últimas décadas.
Meu argumento é que o mesmo pode acontecer com o islã. Isso não significa que não haverá dentro do islã aqueles que interpretarão a religião de forma não-democrática. Mas, se olharmos o exemplo do último século, veremos extremismo, mas também partidos políticos islâmicos que participaram de eleições e atuaram em Parlamentos no Egito, na Jordânia, na Malásia, no Paquistão, na Turquia. Seus integrantes já premiês ou ministros.
É necessário lembrar que essas pessoas existem e não igualá-las aos extremistas. É preciso fazer a distinção entre esses dois grupos.


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