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"As pessoas querem viver o presente"
O escritor Pedro Juan Gutiérrez, amante de Havana, fala do desencanto com regime e do medo de ficar só
Ex-comunista, o autor não vê transição de poder violenta na ilha e diz que desejo de partir será tema de seus próximos livros
DO ENVIADO ESPECIAL A HAVANA
Atual escritor cubano mais
conhecido no exterior, Pedro
Juan Gutiérrez, 56, normalmente se recusa a falar de política. Seus livros são dominados
por sexo, rum e drogas, ainda
que a crítica internacional faça
uma leitura política de suas
obras.
Gutiérrez evita falar do regime castrista desde que foi demitido da revista estatal "Bohemia", após a publicação de "Trilogia Suja de Havana", seu primeiro sucesso internacional,
jamais editado na ilha. Mas,
nesta entrevista, o ex-comunista de carteirinha fala do desencanto com a revolução, do futuro e como o êxodo da ilha se tornou tema dominante nas conversas cotidianas.
Ele recebeu a Folha no seu
apartamento, que fica no topo
de um belo e decrépito edifício
de oito andares, no bairro de
Centro Havana. Dali, tem-se
uma magnífica vista do Malecón e da baía da capital cubana.
O elevador quebrou quando a
reportagem da Folha subia à
cobertura e foi salva por uma
anciã com dificuldades visuais,
que desceu alguns andares para pedir ajuda. "Nesta visita,
você vai entender minha vizinhança e literatura", havia
anunciado Gutiérrez.
(RAUL JUSTE LORES)
FOLHA - "Animal Tropical" fala de
sua estadia na Suécia, e boa parte
dos livros e filmes cubanos no momento falam da vontade dos jovens
de tentar a vida na Europa ou nos
EUA. A imigração virou o grande tema em Cuba?
PEDRO JUAN GUTIÉRREZ - Temos 3
milhões de cubanos no exílio e
nossa população é de apenas 11
milhões. É um tema dominante
aqui partir ou ficar, que aumentou muito nos últimos cinco
anos. Os jovens querem ir embora, as pessoas não querem esperar para ver se Cuba vai melhorar em dez anos. Elas querem viver o presente. E gente
da minha idade começa a se
sentir sozinha quando filhos,
sobrinhos, primos vão todos
embora. Ninguém quer ficar só.
O artista Kcho usa balsas, remos, a estética dos balseiros como tema de suas obras de arte.
Rompem-se famílias, projetos,
amores. Penso em escrever sobre esse assunto logo, ainda que
queira continuar a viver aqui.
FOLHA - O sr. participou de meios
de comunicação estatais. Depois,
tornou-se um crítico. Quando e como aconteceu seu desencanto?
GUTIÉRREZ - Foi um processo
lento, em que deixei de acreditar na revolução. Porque por
muito tempo me dediquei à revolução. Dava aulas de marxismo como voluntário, escrevi
em publicações do regime, fui
radialista. Acreditava mesmo.
Sou muito romântico. Fiquei
alucinado quando aprendi a
compreender como o sistema
funciona e ver certos atos. Políticos são muito pragmáticos e
não sou feito dessa madeira. Se
eu fosse da equipe do Lula, por
exemplo, eu já teria saído.
FOLHA - Prostitutas e cortiços miseráveis estão em quase todas as
suas obras. A vida em Cuba continua
tão ruim?
GUTIÉRREZ - "Trilogia Suja de
Havana" é de 1998, está escrito
sob o impacto do período especial, a partir de 1991, quando sofremos nossa maior crise econômica. Estávamos no fundo
do poço. Tínhamos uma vida
desesperada, marginal. Explodiu a prostituição, e até para
conseguirmos uma aspirina tínhamos de recorrer a parentes
no exterior. Faltou tudo, tudo
mesmo. Minha literatura escreveu sobre essa estética das
ruínas. Comparando, agora estamos muito melhor, temos
mais alimento.
FOLHA - O sr. se sentiu um pária depois que foi demitido da revista "Bohemia" e reprovado pelo regime?
GUTIÉRREZ - Depois da publicação da "Trilogia" fui demitido
da revista "Bohemia", sem explicação. Fui retirado do sindicato dos radialistas; perdi tudo.
O pior é que perdi amigos -que
eu achava que fossem amigos.
As pessoas fingiam que não me
conheciam, me senti um fantasma. Fiquei tão deprimido
que me tornei agressivo, furioso e achava que tudo se "resolvia" com álcool e drogas; fiquei
anos sedado. Tive uma vida desesperada, promíscua, melancólica quando deixei de acreditar em um projeto político.
FOLHA - O sr. está preparando textos de viagens suas pelo interior de
Cuba. O que viu?
GUTIÉRREZ - O interior continua
muito mais pobre que Havana,
vive uma situação lamentável.
Vi gente que estuda energia piramidal, que acredita e persegue OVNIs; é uma transformação e tanto. A ioga já foi proibida na ilha, assim como as religiões. Mas, a partir dos anos 90,
todo mundo retirou os crucifixos e os cristos escondidos nos
armários.
FOLHA - Como o sr. acha que será
Cuba sem Fidel?
GUTIÉRREZ - Ninguém sabe o
que vai acontecer. Há muitos
possíveis cenários para se desenvolver aqui e no exterior.
Mas há chances de errar em
90% dos prognósticos. Cuba é
um país bem mais imprevisível
do que acreditam os cientistas
políticos anglo-saxãos. Já decretaram o fim do regime várias
vezes e há muitos anos.
Mas o que desejo é que qualquer mudança se dê com diálogo, conversa, com amor e compaixão; sem violência. De dentro ou de fora. Não acredito que
aconteça uma mudança violenta, com derramamento de sangue. Somos um país com bom
nível educativo, temos de fazer
jus a ele.
FOLHA - Como foi seu envolvimento com a revolução? Sua família era
de classe média.
GUTIÉRREZ - Meu pai distribuía
sorvete em Matanzas e perdeu
a sorveteria com a revolução.
Mas ele decidiu ficar em Cuba,
e eu acreditava na revolução. É
verdade que boa parte da classe
média e todos os mais ricos se
foram. Pequenos empresários,
as numerosas coletividades
chinesa, galega, asturiana, os
comerciantes judeus, médicos,
profissionais liberais começaram a abandonar o país. Aos 19
anos, conheci uma garota de
uma família muito pobre, que
sofria a pobreza, tanto a material quanto a intelectual, que é o
machismo. Vi esse círculo vicioso de perto, tinha de me rebelar contra isso. Meus livros
tentam mostrar como a pobreza destrói a família, o ser humano e impede todas as possibilidades.
FOLHA - O sr. começou a publicar já
quarentão. A literatura foi paixão
tardia?
GUTIÉRREZ - Quando li "Bonequinha de Luxo", de Truman
Capote, decidi que queria escrever como ele, que não parecesse literatura, que parecesse
vida real, contar o que me rodeia. Escrevia contos, poesia; a
literatura era minha amante
secreta enquanto eu era locutor de rádio. Só comecei a escrever para publicar aos 44
anos, não tinha pressa. Antes,
eu queria viver. Visitei a antiga
Alemanha Oriental, a União
Soviética, fui ao Brasil pela primeira vez ainda nos anos 80.
Praticava esportes, caiaque, fumava todas as drogas, só não
queria dormir. Eu era o machão
que não tinha tempo a perder.
FOLHA - Em seus livros, quase não
há menções à política na ilha. O sr. se
autocensura?
GUTIÉRREZ - Trato de evitar a
política nos meus livros, conscientemente. Quando reviso os
originais, vou riscando e apagando o que acho que está muito político. Não quero ter problemas, mas faço isso por causa
da permanência. Não quero
que meus livros envelheçam, e
já sei diferenciar jornalismo de
literatura. Poucos livros meus
foram publicados em Cuba,
mas não sei os porquês, como
eles decidem o que sai ou não.
Meu último, "Nosso GG em Havana", um romance curto e divertido sobre Graham Greene
em Cuba, foi publicado aqui.
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