São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Estallido" minou sistema partidário

Sob os gritos de "que se vayan todos", a tradicional UCR perdeu força, a Frepaso acabou e peronismo ficou mais pulverizado

Descrença na classe política e conservadorismo de uma classe média que recupera o padrão de vida reduzem espaço para renovação


20.dez.2001- Marcos Haupa/Reuters
Argentinos fazem megaprotesto diante da Casa Rosada, em Buenos Aires, exigindo a renúncia do presidente Fernando de la Rúa


SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

Lugano, um dos bairros mais pobres de Buenos Aires, último dia do ano de 2001. Um bando de garotos com roupas de roqueiro, de classe média baixa, toma cerveja num boteco de rua. Um deles diz para os outros: "Somos tão pobres que não temos nem presidente". A cena, presenciada pela historiadora Patricia Funes, professora de história da América Latina da Universidade de Buenos Aires, ilustra bem um dos efeitos do "estallido" no imaginário da população argentina.
Naquele momento, não era apenas a economia que parecia golpeá-la -"afinal, aqueles garotos deveriam ser pobres antes mesmo de a crise começar"- mas a sensação generalizada de insegurança política.
Com a queda do governo de Fernando de La Rúa, a dissolução da Frepaso (Frente País Solidário), o baque levado pela UCR (União Cívica Radical) -que comandava a coalizão- e o peronismo dividido em lideranças individuais que não coincidiam quanto a que solução apresentar ao país, o quadro político argentino era caótico. O grito de "que se vayan todos" ecoava nas ruas -por meio das manifestações de piqueteiros, desempregados, aposentados, a classe média em peso- a descrença da população com relação à classe política. O futuro parecia negro.
"O que assistimos nos últimos cinco anos não foi só uma crise de partidos, mas de todo o sistema partidário e de representação em geral", diz o sociólogo Waldo Ansaldi, pesquisador do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas e professor da Universidade de Buenos Aires.
Para ele, a fratura do Partido Justicialista (peronista) e o fracasso de mais uma tentativa de se criar um terceiro partido de peso foram os acontecimentos mais importantes da vida política da Argentina nos últimos cinco anos.
Fenômeno difícil de ser compreendido por estrangeiros, o peronismo, que já se apresentava dividido em 2001, diluiu-se ainda mais em diferentes frentes depois do "estallido".
Ao longo desse período, o perfil centralizador do presidente Néstor Kirchner, eleito sem a maioria dos votos, se tornou um pólo de atração para uma das facções do partido, mas reforçou a migração de líderes históricos e desafetos para outros setores do partido.
"Atualmente o Partido Justicialista ainda é de longe o mais importante do país, mas não é estático, o sistema partidário encontra-se num processo de recomposição", diz José Luis Beired, professor de história da América da Unesp.
Ansaldi crê que o sistema de partidos está, aos poucos, se recompondo, mas que os dois principais partidos do país -o Justicialista e a UCR- já não terão a tradicional centralidade. "Ela será exercida por um sistema de coalizões que, ainda que inclua esses partidos, deve se basear em lideranças alternativas que tendem a surgir."
Para Beired, o justicialismo passa por uma crise ideológica desde a década Menem (1989-1999). "O ex-presidente subverteu a tradição peronista de defesa do papel regulador do Estado para abraçar o fundamentalismo liberal."
Os especialistas ouvidos pela Folha, entretanto, concordam com a idéia de que a descrença nos políticos, de um modo geral, está na base da crise de representatividade, mais do que a discussão ideológica sobre o que cada um representa.
"A classe média está recuperando seu padrão de vida anterior, mas já não acredita no que escuta e se desinteressa. Enquanto os que se interessam estão desorientados", diz Ansaldi. "Neste cenário, predominam os restos do velho, que não terminou de morrer, enquanto o novo não consegue nascer. Pior, boa parte do velho começa a ressuscitar", resume Ansaldi.

Esquerda
Diferentemente do que se pensava a partir da tomada das ruas por manifestações de piqueteiros, nenhuma alternativa de esquerda digna de nota surgiu na Argentina nesses cinco anos. A ausência dessa voz, na verdade, é uma característica histórica do país.
Como o peronismo, a partir dos anos 40, incorporou os anseios sociais, supriu de alguma forma as demandas operárias e levantou bandeiras que, na teoria, pertenciam à esquerda, não se formaram grupos políticos especificamente com esta orientação ideológica. Pelo menos não a ponto de fazer frente aos partidos tradicionais.
"A esquerda sempre teve dificuldades para constituir-se como força majoritária. Numa sociedade onde o operário podia tornar-se patrão ou ascender socialmente por meio dos filhos convertidos em profissionais de nível universitário, a consciência da mobilidade social aparentemente ao alcance de todos obscureceu a de classe", diz Ansaldi.
Além disso, lembra Gabriel Passetti, doutor em história argentina pela Universidade de São Paulo (USP), a repressão da ditadura aniquilou grande parte da oposição mais radical. Esse elemento, acrescenta, contribuiu para a formação atual de uma "classe média conservadora, além de ser devedora das tradições católicas do país".
Já Funes acha que a esquerda perdeu a oportunidade de participar da democracia a partir das demandas populares. Ela conclui, sobre o panorama político atual. "O "que se vayan todos" não funcionou. Na verdade eles não se foram, apenas se articularam de outra maneira".


Texto Anterior: Argentina pós-crise tem balanço dúbio
Próximo Texto: Crise gerou renovação no cinema
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.