|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Latinos racham entre símbolos Alca e Alba
Em cúpula de América Latina e Caribe na Bahia, mandatários expõem divergências sobre modelo de integração regional
Grupo à esquerda defende união voltada para dentro, alijando os EUA; chefes de governo à direita acham que região não deve se fechar
CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL À COSTA DO SAUÍPE
Coube, surpreendentemente, a Bharrat Jagdeo, presidente da pequena e periférica
Guiana, explicitar a divisão entre os países de América Latina
e Caribe, escondida em meio à
cautelosa retórica latino-americanista e integracionista.
Falando pela manhã, logo
após o discurso do equatoriano
Rafael Correa, Jagdeo cobrou
de seus pares (representantes
de 33 países do subcontinente)
que se definam em relação ao
próximo grande evento regional, a Cúpula das Américas,
marcada para abril em Trinidad e Tobago.
"Vocês querem que a Cúpula
das Américas tenha êxito ou
querem uma alternativa [que
ele próprio lembrou ser a Alba,
Aliança Boliviariana para as
Américas, bloco idealizado pelo
venezuelano Hugo Chávez]?".
O processo de Cúpula das
Américas foi inventado pelos
Estados Unidos, ainda no governo Bill Clinton, e a cereja do
bolo nessa iniciativa seria a Alca (Área de Livre Comércio das
Américas), que, no entanto,
não conseguiu sair do lugar,
acima de tudo por divergências
entre os Estados Unidos e o
Brasil, que são os dois grandes
pólos das Américas.
De certa forma, portanto,
Jagdeo coloca América Latina e
Caribe entre a Alca e a Alba, se
tomadas como símbolos de pólos ideológicos opostos.
O equatoriano Correa, sem
mencionar Alca ou Alba, havia
defendido uma integração voltada para dentro.
Sugeriu até uma "nova arquitetura regional" em contraposição ao bordão "nova arquitetura financeira internacional",
que se discute também desde o
governo Clinton e foi ressuscitada agora, com a crise global.
Ou seja, é basicamente o
mesmo dilema: todos os 33 líderes latino-americanos e caribenhos são a favor da integração regional, mas a ala esquerda (Correa, o venezuelano Hugo Chávez, o boliviano Evo Morales e o nicaraguense Daniel
Ortega) a quer voltada para
dentro.
Jagdeo contrapõe com uma
frase que é óbvia, mas necessária nesse contexto: "Somos parte do mundo. Temos que discutir a arquitetura financeira global, em vez de apenas regional".
Não se pense que se trata de
uma visão restrita ao presidente de um país pequeno de menos de 900 mil habitantes e jamais chamado à mesa dos grandes debates. Como Jagdeo pensam, por exemplo, o colombiano Álvaro Uribe, o peruano
Alan García e o mexicano Felipe Calderón.
Os dois primeiros não compareceram às cúpulas na Bahia.
Uribe alegou a necessidade de
atender às vítimas das inundações do rio Magdalena, o principal do país (desculpa avalizada por Chávez, às vezes crítico
feroz, às vezes amigo de infância de Uribe). Alan García usou
a desculpa de praxe (outros
compromissos).
Mas Calderón, sem se referir
especificamente ao dilema da
região, afirmou claramente: "A
saída [para a crise financeira
global] não é cerrar as fronteiras nem a nível regional nem
global".
As propostas de Correa foram na direção oposta: sugeriu
reforçar o incipiente Banco do
Sul; criar um Fundo de Reservas do Sul, "que sirva de respaldo para uma eventual crise de
balanço de pagamentos"; e mecanismos de compensação no
comércio regional (na prática,
deixaríamos de usar o dólar, o
que aliás está sendo feito de
maneira incipiente no comércio Brasil/Argentina).
Correa, no entanto, não mencionou o fato de que seu país
dolarizou a economia e que ele,
apesar de seu discurso "bolivariano", não tem planos de desdolarização.
Calderón, sempre sem mencionar situações específicas,
não deixou de alfinetar a recém-decretada moratória de
parte da dívida equatoriana.
Cobrou reforçar a "segurança
jurídica, que criaria um ambiente propício aos investidores", ainda mais em um momento em que os investimentos externos escasseiam.
"Segurança jurídica" é um
bordão geralmente usado em
lugar de "respeito aos contratos", respeito que Correa rompeu, ao declarar a moratória.
Brasil
Nesse tiroteio indireto -e
até elegante-, o governo do
presidente Luiz Inácio Lula da
Silva fica no meio, espremido
entre uma retórica latino-americanista e uma prática de política econômica aplaudida pelos
países ricos.
No seu próprio discurso, Lula
se disse disposto a "dobrar a
aposta no nosso bloco" (no caso
o Mercosul).
Mas, ao contrário de Correa,
que prioriza a "arquitetura financeira regional", o Brasil
participa, por meio do G20, da
discussão sobre a arquitetura
financeira global (ao lado de
México e Argentina, entre os
países latino-americanos; não
há caribenhos no G20).
Em meio às diferentes visões
sobre o processo de integração,
sobram retórica romântica e
afirmações grandiloqüentes.
De Chávez, por exemplo:
"Estamos começando um caminho, um caminho que se perdeu há muito tempo, o caminho
de Bolívar, San Martín, O'Higgins [heróis da independência
de países andinos, Argentina e
Chile, respectivamente], de
nossos fundadores de pátria" .
Ainda de Chávez: "O importante é que estamos juntos aqui
sem o apadrinhamento do império [os EUA]".
Raúl Castro, o presidente cubano, falou em "Nuestra América", o paraguaio Fernando
Lugo em "Pátria Grande" (latino-americana e caribenha).
Já o chileno José Miguel Insulza, secretário-geral da Organização dos Estados Americanos, a instituição que reúne todos esses países (menos Cuba)
mais Canadá e Estados Unidos,
põe um pouco de realismo:
"Não se pode confundir uma
instituição, como a OEA, com
uma conferência como esta",
disse à Folha.
Texto Anterior: Oriente Médio: Suprema Corte israelense pede revisão de limites de barreira Próximo Texto: Análise: Para analistas, EUA de fato perdem poder Índice
|