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São Paulo, domingo, 18 de maio de 2003

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TRANSIÇÃO NA ARGENTINA

Na Província que governou, eleito lega bons índices sociais e sofre duras acusações de clientelismo

Kirchner é "deus" e "diabo" em Santa Cruz

ELAINE COTTA
ENVIADA ESPECIAL A
RÍO GALLEGOS (SANTA CRUZ)


O presidente eleito da Argentina, Néstor Kirchner, deixou em Santa Cruz, a Província que governou nos últimos 12 anos, um rastro de assistencialismo, alguns dos melhores índices sociais do país e fortes acusações de práticas clientelistas e centralizadoras.
"Ele sempre conduziu a Província como se fosse uma estância sua. Nunca foi capaz de receber críticas e sugestões e, em 12 anos, nunca abriu nem cinco minutos em sua agenda para ouvir a oposição," reclama Omar Muñiz deputado oposicionista de Santa Cruz.
Essa acusação, local, vai ganhando dimensão nacional. "Há um grande risco em Kirchner: comportar-se como em Santa Cruz", disparou, anteontem, Elisa Carrió, candidata derrotada à Presidência.
"Em uma Província com 200 mil habitantes, o governador tende a ser aquele que monopoliza a opinião, a decisão. Se ele tiver essa atitude [como presidente], terá grandes problemas, porque a Argentina não é um feudo", disse Carrió.
Kirchner rebate as críticas afirmando que a aprovação popular é a sua melhor defesa. "Pergunte à população de Santa Cruz, não a meia de dúzia de integrantes da oposição. Aqui eu obtive mais de 80% dos votos no primeiro turno e isso é mais que uma mostra de que o povo dá respaldo ao meu governo."
A mobilização popular que o recepcionou no aeroporto de Río Gallegos na noite da última quinta-feira reforça o argumento de Kirchner. Milhares de pessoas enfrentaram o frio de -1ºC para aplaudir e homenagear o primeiro presidente da história da Argentina nascido na região da Patagônia. "Ele foi ótimo governador, vai ser um bom presidente", afirmou um dos moradores da cidade que estava em pé, no frio, à espera de Kirchner.

Controle total
O jornalista Daniel Gatti, autor do livro "Kirchner: o Amo do Feudo", diz que o presidente eleito pratica um estilo de política clientelista e que o elevado volume de subsídios que distribui à população é uma forma de monitorar votos.
"Ele impediu o desenvolvimento industrial e de qualquer outra atividade que não pudesse controlar e fez com que o comércio se tornasse economicamente dependente do Estado", disse Gatti.
Em Santa Cruz, 47% da população trabalha para o governo. O restante recebe algum tipo de subsídio, seja para alimentação ou calefação -aqui, todas as casas, até as mais pobres, têm aquecimento a gás. Kirchner também investiu pesado na construção de casas populares, escolas e hospitais. Há um posto de saúde em cada bairro, até nos mais distantes.

Distribuição de renda
Diante disso, qual é o problema de um governo que gasta boa parte do que arrecada em programas sociais e de assistência à população mais carente? "Nenhum", responde o deputado Muñiz. A questão, segundo ele, é que esse sistema não pode se transformar em política permanente de governo.
"A assistência é um mecanismo provisório que possibilita a distribuição da renda e promove uma maior justiça social. Mas, aqui, as pessoas não caminham sozinhas. Elas dependem do governo para comer, e a expectativa é que as coisas continuem assim nos próximos 20 anos."
Os números demonstram: Santa Cruz tem a melhor distribuição de renda do país. As contas públicas, ao contrário da maioria das Províncias argentinas, são superavitárias e a taxa de desemprego é de 3,5%. Em todo o país, os desempregados são 17,8%, e os subempregados chegam a 19,9%.
A Província também tem uma das menores taxas de pobreza da Argentina. Em toda Santa Cruz, apenas 5,1% das crianças entre 5 anos e 17 anos não frequentam a escola. Essa taxa é a menor do país. Na Argentina, 12,9% das crianças e adolescentes estão fora da escola.

Orçamento
Atualmente, cerca de 30% do orçamento vem do recebimento de royalties das empresas que exploram petróleo e gás na região. A pesca e a criação de carneiro são as duas outras atividades econômicas da Província, junto com o turismo.
Em 2002, segundo dados da Assembléia Legislativa, o orçamento administrado por Kirchner beirava os 500 milhões de pesos (ou R$ 537 milhões). Calcula-se que, em 12 anos de mandato, passaram pelos cofres da Província no mínimo 7 bilhões de pesos (R$ 7,5 bilhões).
"O problema é que não temos uma atividade econômica que movimente a região. Acredito que Santa Cruz tenha condições de criar trabalho genuíno, sem que as pessoas precisem depender completamente dos serviços de assistência às necessidades mais básica da população", assinala Muñiz.
Segundo estudo realizado pelo governo, até a década de 80 o setor pesqueiro era um dos mais importantes na economia da Província. Mas a falta de implementação de uma infra-estrutura portuária prejudicou os produtores locais que, aos poucos, foram desistindo desse tipo de atividade econômica.
A retomada veio com a chegada de empresas pesqueiras estrangeiras, principalmente espanholas. A pesca de truta e salmão, abundantes na região, cresceu mais de 160% entre 1988 e 1996, ano em que foi, sozinha, responsável por 80% da arrecadação. A atividade é desenvolvida nas cidades Puerto Deseado e Puerto San Julián, que chegaram a ficar inativas durante alguns anos.
"O problema é que aqui não há emprego. Há quem trabalhe para o governo e quem receba ajuda, mas os jovens não conseguem oportunidade de trabalho e têm de ir embora", afirmou o taxista José Hernandez, pai de três filhos. "O meu [filho] mais velho saiu de casa. Foi procurar emprego em Buenos Aires", disse.
O jornalista Daniel Gatti também critica o fato de Kirchner se autodenominar um político que segue uma linha de política econômica mais heterodoxa.
"Seu tema desconhecido preferido é a economia, se define como neokeynesiano, mas antes foi um peronista próximo de [Carlos] Menem e amigo e admirador de [Domingo] Cavallo, enquanto a amizade lhe rendeu frutos", disse Gatti, aludindo ao ex-presidente e seu ministro da Economia.


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