São Paulo, terça-feira, 18 de julho de 2006

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Em Beirute, medo e caos se refletem na comida

Repórter na capital libanesa relata os momentos anteriores aos ataques

No dia seguinte à captura de dois soldados israelenses pelo Hizbollah, libaneses já se preparavam para o cerco israelense estocando pão

ANNIA CIEZADLO
DA "NATION", EM BEIRUTE

Os primeiros aviões de guerra cruzaram os céus por volta das 3h30 da madrugada de sexta-feira, justo quando o chamado para as orações ecoava da mesquita, e a mensagem débil, pré-gravada, se perdia sob o crescente rugido dos motores.
Os bombardeios começaram logo em seguida, e as armas antiaéreas estouraram às 4h. Não conseguimos dormir até o amanhecer. Acordei às 9h, quando uma mensagem de texto apareceu no meu celular. Era de um amigo de Bagdá, que escreveu: "Espero que você esteja bem. Todos aqui no Iraque estamos preocupados com você". Fiquei feliz, mas sua mensagem não me fez sentir muito melhor: quando iraquianos lhe enviam uma mensagem de Bagdá para saber se você está bem, você sabe que não é nada bom.
Estávamos mais ou menos prontos para isso. No dia seguinte ao que o Hizbollah seqüestrou os dois soldados israelenses, toda a Beirute se preparou para a guerra à moda tradicional libanesa: fazendo compras. Compramos comida "de cerco" -qualquer coisa que não precise de refrigeração: leite em pó, humus enlatado, feijão. Menos racionalmente, porém, fizemos uma lista de comidas "confortáveis", feita de medo e de desejo: eu comprei um bolo de chocolate por nenhuma razão. Iogurtes, que estragarão tão logo acabe a eletricidade, sumiram das prateleiras. E todos fizeram fila para comprar pão. Vai estar mofado em um ou dois dias, mas quem não se sente melhor depois de cheirar um pão saído do forno? Comprei cinco pães de forma.
Na verdade, tantas pessoas compraram pão que o sindicato dos padeiros divulgou uma nota nas rádios locais dizendo que as pessoas não deviam estocar pão porque eles não vão ter farinha suficiente para fazê-los. "Se vocês continuarem estocando pão", alertaram os padeiros, "isso irá contribuir para a crise". Isso significa que, parando de comprar pão, Israel e o Hizbollah vão parar de se bombardear?
Nossa política é tão esquizofrênica quanto nossas cestas de compras. No primeiro dia, todas as pessoas com quem conversei estavam furiosas com o Hizbollah. Mas quando Israel bombardeou o aeroporto, de repente, comecei a ouvir manifestações de aprovação cautelosas das pessoas que antes criticavam a milícia xiita. Eram cristãos e muçulmanos seculares, não partidários do Hizbollah, mas eles guardaram seu ódio contra Israel e os Estados Unidos. "Estou com raiva dos israelenses", disse meu amigo George, que até então defendia que o Hizbollah entregasse suas armas. "Eles reagiram de uma maneira muito agressiva. Não precisava disso tudo para recuperar os dois reféns. Mas também estou com raiva dos Estados Unidos. Eles não fizeram nada ainda."
Como se isso não fosse confuso o suficiente, outro amigo confessou sentir nostalgia dos tempos de Ariel Sharon -desejando que o homem uma vez chamado de "o carniceiro de Beirute" ainda estivesse no comando, em vez de um governo israelenses relativamente inexperiente com tudo a provar.
Na noite de sexta-feira, por voltas das 20h30, o líder do Hizbollah, Hassan Nasrallah, anunciou que seus combatentes haviam acabado de bombardear um navio de guerra israelense. Olhem pela janela, ele disse, e vocês verão o navio que atacou suas casas em chamas. Ele prometeu aos israelenses mais "surpresas".
Era uma noite quente, e tínhamos todas as janelas abertas. Tão logo Nasrallah fez seu dramático anúncio ouvi comemorações e palmas dos apartamentos vizinhos. Logo depois, carros tomaram as ruas vazias buzinando, como se a morte e a destruição que haviam ocorrido e que seguiriam fossem um casamento ou uma vitória na Copa do Mundo. Não se dão conta de que isso significa mais bombas, mais mísseis, uma outra guerra, pensei?


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