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Em Beirute, medo e caos se refletem na comida
Repórter na capital libanesa relata os momentos anteriores aos ataques
No dia seguinte à captura de dois soldados israelenses pelo Hizbollah, libaneses já se preparavam para o cerco israelense estocando pão
ANNIA CIEZADLO
DA "NATION", EM BEIRUTE
Os primeiros aviões de guerra cruzaram os céus por volta
das 3h30 da madrugada de sexta-feira, justo quando o chamado para as orações ecoava da
mesquita, e a mensagem débil,
pré-gravada, se perdia sob o
crescente rugido dos motores.
Os bombardeios começaram
logo em seguida, e as armas antiaéreas estouraram às 4h. Não
conseguimos dormir até o amanhecer. Acordei às 9h, quando
uma mensagem de texto apareceu no meu celular. Era de um
amigo de Bagdá, que escreveu:
"Espero que você esteja bem.
Todos aqui no Iraque estamos
preocupados com você". Fiquei
feliz, mas sua mensagem não
me fez sentir muito melhor:
quando iraquianos lhe enviam
uma mensagem de Bagdá para
saber se você está bem, você sabe que não é nada bom.
Estávamos mais ou menos
prontos para isso. No dia seguinte ao que o Hizbollah seqüestrou os dois soldados israelenses, toda a Beirute se preparou para a guerra à moda tradicional libanesa: fazendo compras. Compramos comida "de
cerco" -qualquer coisa que
não precise de refrigeração: leite em pó, humus enlatado, feijão. Menos racionalmente, porém, fizemos uma lista de comidas "confortáveis", feita de
medo e de desejo: eu comprei
um bolo de chocolate por nenhuma razão. Iogurtes, que estragarão tão logo acabe a eletricidade, sumiram das prateleiras. E todos fizeram fila para
comprar pão. Vai estar mofado
em um ou dois dias, mas quem
não se sente melhor depois de
cheirar um pão saído do forno?
Comprei cinco pães de forma.
Na verdade, tantas pessoas
compraram pão que o sindicato
dos padeiros divulgou uma nota nas rádios locais dizendo que
as pessoas não deviam estocar
pão porque eles não vão ter farinha suficiente para fazê-los.
"Se vocês continuarem estocando pão", alertaram os padeiros, "isso irá contribuir para a
crise". Isso significa que, parando de comprar pão, Israel e o
Hizbollah vão parar de se bombardear?
Nossa política é tão esquizofrênica quanto nossas cestas de
compras. No primeiro dia, todas as pessoas com quem conversei estavam furiosas com o
Hizbollah. Mas quando Israel
bombardeou o aeroporto, de
repente, comecei a ouvir manifestações de aprovação cautelosas das pessoas que antes criticavam a milícia xiita. Eram
cristãos e muçulmanos seculares, não partidários do Hizbollah, mas eles guardaram seu
ódio contra Israel e os Estados
Unidos. "Estou com raiva dos
israelenses", disse meu amigo
George, que até então defendia
que o Hizbollah entregasse
suas armas. "Eles reagiram de
uma maneira muito agressiva.
Não precisava disso tudo para
recuperar os dois reféns. Mas
também estou com raiva dos
Estados Unidos. Eles não fizeram nada ainda."
Como se isso não fosse confuso o suficiente, outro amigo
confessou sentir nostalgia dos
tempos de Ariel Sharon -desejando que o homem uma vez
chamado de "o carniceiro de
Beirute" ainda estivesse no comando, em vez de um governo
israelenses relativamente inexperiente com tudo a provar.
Na noite de sexta-feira, por
voltas das 20h30, o líder do
Hizbollah, Hassan Nasrallah,
anunciou que seus combatentes haviam acabado de bombardear um navio de guerra israelense. Olhem pela janela, ele
disse, e vocês verão o navio que
atacou suas casas em chamas.
Ele prometeu aos israelenses
mais "surpresas".
Era uma noite quente, e tínhamos todas as janelas abertas. Tão logo Nasrallah fez seu
dramático anúncio ouvi comemorações e palmas dos apartamentos vizinhos. Logo depois,
carros tomaram as ruas vazias
buzinando, como se a morte e a
destruição que haviam ocorrido e que seguiriam fossem um
casamento ou uma vitória na
Copa do Mundo. Não se dão
conta de que isso significa mais
bombas, mais mísseis, uma outra guerra, pensei?
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