São Paulo, domingo, 18 de setembro de 2005

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ANÁLISE

Sobre o erro de reconstruir Nova Orleans

JACK SHAFER

Ninguém pode negar a primazia cultural de Nova Orleans ou a importância histórica da cidade. Mas, antes de trazermos a cidade afundada à tona, antes de pensarmos em gastar bilhões de dólares para reconstruir diques que talvez não consigam conter a próxima tempestade, antes de reconstruir milhares de casas que neste momento estão apodrecendo nas águas contaminadas, vamos pesquisar que tipo de lugar era aquele que o Katrina destruiu.
O propalado romantismo da cidade não é a realidade da maioria das pessoas que vivem nela. Nova Orleans é um lugar pobre -cerca de 27% de sua população de 484 mil habitantes vive abaixo da linha de pobreza- e negro: 67% de seus habitantes são afro-americanos. Em 65% das famílias que vivem na pobreza não há marido presente. Quando se sobrepõe um mapa da área inundada de Nova Orleans devido ao furacão (cerca de 80% da cidade) ao mapa demográfico do Centro de Dados da Comunidade da Grande Nova Orleans, que mostra onde vive a população negra e a um outro ainda que mostra onde vivem os pobres, fica evidente quem o Katrina atingiu mais duramente.
As escolas públicas de Nova Orleans, 93% de cujos alunos são negros, não têm prestado um trabalho de valor para seus cidadãos.
O Estado da Louisiana classifica 47% das escolas de Nova Orleans como "academicamente inaceitáveis" e outras 26% estão sob "aviso acadêmico". Cerca de 25% dos adultos da cidade não têm diploma do ensino secundário.
A polícia inspira tão pouca confiança que é freqüente testemunhas se negarem a depor no tribunal. No ano passado, pesquisadores da universidade conduziram uma experiência: fizeram a polícia disparar 700 balas de festim num bairro de Nova Orleans numa tarde qualquer. Nem uma pessoa sequer foi ao telefone denunciar os disparos. Não surpreende que o índice de homicídios da cidade seja dez vezes superior à média nacional.
Essa cidade contabiliza 188 mil moradias habitadas, cerca de metade delas moradias alugadas e a outra metade casas próprias. Os imóveis habitacionais são muito mais velhos do que a média nacional: 43% foram construídos em 1949 ou antes (comparado com 22% nos EUA como um todo) e apenas 11% foram construídos desde 1980 (contra 35% na média nacional).
Como já observamos, muitas das casas inundadas variam do modesto ao espartano, passando pelo decrépito, e, se não forem destruídas primeiro pelo fogo ou pelo mofo tóxico, terão que ser demolidas.

Sadismo
Nova Orleans é a cidade que inscreveu o "d" na palavra "disfuncional". Apenas um sádico insistiria em ressuscitar essa concentração de pobreza, criminalidade e escolas deploráveis.
No entanto é isso o que defendem os entusiastas de Nova Orleans, tanto os nativos quanto os turistas. Eles prevêem que, depois de drenar a água e faxinar a cidade, vão restaurar Nova Orleans à sua "glória" anterior.
Apenas um político, o presidente da Câmara, Dennis Hastert, ousou questionar a idéia de reconstruir Nova Orleans como ela era, onde ela ficava. No dia 31 de agosto, em reunião com o conselho editorial do "Daily Herald" de Arlington Heights, Illinois, Hastert falou da insanidade geográfica de reconstruir Nova Orleans. "Isso não faz sentido para mim... E é uma pergunta que devemos nos fazer", disse ele. "A impressão que se tem é que boa parte da cidade poderia ser terraplenada."
Hastert foi duramente criticado por sua franqueza e seu bom senso. A senadora democrata Mary Landrieu, da Louisiana, e outros interpretaram suas observações como prova da sede republicana de destruição, quando o assunto são as vítimas de catástrofes. Mas, se lermos a entrevista inteira, poderemos concluir que Hastert estava dando voz a heresias, mas não dizendo nada de feio nem mesmo swiftiano.
Klaus Jacob manifestou apoio às opiniões de Hastert em editorial publicado no "Washington Post" em 6 de setembro.
Geofísico por formação, ele observou que o Katrina não foi nem sequer o pior cenário possível em matéria de furacões. Se o furacão tivesse passado um pouco a oeste de Nova Orleans, em lugar de um pouco a leste, "a cidade teria sido inundada em menos tempo e o número de mortes teria sido maior".
Ninguém questiona as desvantagens geográficas e oceanográficas de Nova Orleans: o fato de que o golfo do México é um criadouro perfeito para furacões, que as modificações impostas ao rio Mississippi para controlar as enchentes tornaram Nova Orleans mais vulnerável a elas, ao lhe negar os depósitos de sedimentos de que precisa para manter sua cabeça acima d'água, e que a extração maciça de petróleo e gás da região prejudicou a estabilidade da terra.
"Nova Orleans tem o desejo natural de ser lago", disse à "Time" o professor de ciências atmosféricas e da terra Timothy Kusky, da Universidade St. Louis, na semana passada. Ao "Atlanta Journal-Constitution", Kusky falou: "Nunca deveria ter sido erguida uma cidade nesse lugar, para começo de conversa".

Barco
Por que ela foi construída? A cidade original foi construída sobre a curva de terreno alto formado por sedimentos depositados pelo rio Mississippi ao longo de milhares de anos; vem daí seu apelido de "Crescent City" (Cidade da Meia-Lua). A partir do final dos anos 1800, porém, e até o início do século 20, construtores começaram a limpar e drenar os pântanos situados atrás da meia-lua, chegando a ponto de jogar terra no lago Pontchartrain para ampliar a cidade.
Muitos dos bairros de Nova Orleans de menor altitude são áreas resgatadas do pântano. Mesmo terrenos situados em áreas mais "altas" sofriam enchentes até passarem pela intervenção de engenheiros. Pelos padrões históricos da cidade de 400 anos, muitos dos bairros mais inundados acabam de descer do barco.
A decisão de reconstruir o sistema de diques de Nova Orleans pode ser debatida se os moradores da cidade que foram removidos decidirem não retornar.
O governo federal, que administra o setor dos seguros contra enchentes, vendeu apenas 85 mil apólices residenciais e comerciais -e isso numa cidade que tem 188 mil moradias habitadas.
A cobertura é restrita ao máximo de US$ 250 mil por imóvel comercial e US$ 100 mil por imóvel residencial. Como os segurados podem utilizar em outros lugares o dinheiro que vão receber, não existe garantia de que irão optar por reconstruir suas casas em Nova Orleans, que vai continuar vulnerável ao extremo enquanto os diques não forem refeitos.
Poucos proprietários de imóveis próprios ou alugados que não possuem seguro dispõem de meios para reconstruir -e da disposição para isso. E quantos dos trabalhadores ricos ou bem de vida da cidade -as pessoas que fornecem a base de contribuintes- irão retornar? Médicos, advogados, contadores e professores universitários terão empregos para os quais voltar?
Segundo o "Wall Street Journal", muitas empresas se transferirão. A não ser que o governo federal adote Nova Orleans e pague suas contas pelos próximos 20 anos -uma proposta entre absurda e improvável de ser aceita-, a cidade não será reconstruída.
Barbara Bush, mãe do presidente, foi tachada de insensível e de condescendente por ter dito que muitos dos refugiados com quem ela falou no Astrodome prefeririam permanecer no Texas. Mas ela deve ter razão. Para muitos dos desabrigados de Nova Orleans, a destruição provocada pelo Katrina pode acabar se revelando uma "destruição criativa", para roubar um termo cunhado por Joseph Schumpeter.
A não ser que o governo faça um trabalho tremendo de incentivo à migração inversa, um efeito colateral positivo do desenraizamento de milhares de vidas será o de desconcentrar um dos piores bolsões de miséria nos Estados Unidos. As primeiras páginas dos jornais no início do mês, como as do "New York Times", ilustravam melhor do que eu poderia fazer como os cálculos econômicos das pessoas fustigadas pelo Katrina podem contribuir para o fim da cidade.

Ônibus
Em seus 19 anos de vida, todos vividos no centro de Nova Orleans, Chavon Allen nunca tinha se aventurado a ir mais longe do que uma passagem de ônibus podia levá-la -ou seja, o mais longe que ela já fora tinha sido a Baton Rouge, no ano passado. Mas, agora que conhece Houston, ela pretende ficar. "Este é um novo começo para mim. Quero dizer, por que jogar fora uma boa oportunidade, por que voltar para uma coisa que a gente sabe que tem problemas?", disse Allen, que está ganhando US$ 5,15 por hora servindo frango num restaurante.
Nova Orleans não vai desaparecer da noite para o dia, é claro.
O Bairro Francês, Garden District, West Riverside, Black Pearl e outras partes elevadas da cidade vão sobreviver até serem destruídas por uma tempestade ainda maior. Talvez até cresçam e floresçam como destinos turísticos e lugares onde se possa viver a boa vida. Mas seria um erro reerguer a Atlântida americana.

 

Peço desculpas a Louis Armstrong, Fats Domino, Ernie K-Doe, Allen Toussaint, Tipitina's, Dr. John, Clarence "Frogman" Henry, Jelly Roll Morton, Jessie Hill, Lee Dorsey, The Meters, Robert Parker, Alvin Robinson, Joe "King" Oliver, Kid Stormy Weather, Huey "Piano" Smith, Aaron Neville e seus irmãos (o falsete é a mais alta expressão masculina de emoção), Frankie Ford, Chris Kenner, Professor Longhair, Wynton Marsalis e sua família, Sidney Bechet e Marshall Faulk. Aguardo suas mensagens iradas no endereço slate.pressbox@ gmail.com.

Jack Shafer é jornalista e editor da revista "Slate", na qual este artigo foi originalmente publicado

Tradução de Clara Allain


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