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ANÁLISE
Sobre o erro de reconstruir Nova Orleans
JACK SHAFER
Ninguém pode negar a primazia cultural de Nova Orleans ou a
importância histórica da cidade.
Mas, antes de trazermos a cidade
afundada à tona, antes de pensarmos em gastar bilhões de dólares
para reconstruir diques que talvez
não consigam conter a próxima
tempestade, antes de reconstruir
milhares de casas que neste momento estão apodrecendo nas
águas contaminadas, vamos pesquisar que tipo de lugar era aquele que o Katrina destruiu.
O propalado romantismo da cidade não é a realidade da maioria
das pessoas que vivem nela. Nova
Orleans é um lugar pobre -cerca
de 27% de sua população de 484
mil habitantes vive abaixo da linha de pobreza- e negro: 67%
de seus habitantes são afro-americanos. Em 65% das famílias que
vivem na pobreza não há marido
presente. Quando se sobrepõe
um mapa da área inundada de
Nova Orleans devido ao furacão
(cerca de 80% da cidade) ao mapa
demográfico do Centro de Dados
da Comunidade da Grande Nova
Orleans, que mostra onde vive a
população negra e a um outro
ainda que mostra onde vivem os
pobres, fica evidente quem o Katrina atingiu mais duramente.
As escolas públicas de Nova Orleans, 93% de cujos alunos são negros, não têm prestado um trabalho de valor para seus cidadãos.
O Estado da Louisiana classifica
47% das escolas de Nova Orleans
como "academicamente inaceitáveis" e outras 26% estão sob "aviso acadêmico". Cerca de 25% dos
adultos da cidade não têm diploma do ensino secundário.
A polícia inspira tão pouca confiança que é freqüente testemunhas se negarem a depor no tribunal. No ano passado, pesquisadores da universidade conduziram uma experiência: fizeram a
polícia disparar 700 balas de festim num bairro de Nova Orleans
numa tarde qualquer. Nem uma
pessoa sequer foi ao telefone denunciar os disparos. Não surpreende que o índice de homicídios da cidade seja dez vezes superior à média nacional.
Essa cidade contabiliza 188 mil
moradias habitadas, cerca de metade delas moradias alugadas e a
outra metade casas próprias. Os
imóveis habitacionais são muito
mais velhos do que a média nacional: 43% foram construídos
em 1949 ou antes (comparado
com 22% nos EUA como um todo) e apenas 11% foram construídos desde 1980 (contra 35% na
média nacional).
Como já observamos, muitas
das casas inundadas variam do
modesto ao espartano, passando
pelo decrépito, e, se não forem
destruídas primeiro pelo fogo ou
pelo mofo tóxico, terão que ser
demolidas.
Sadismo
Nova Orleans é a cidade que
inscreveu o "d" na palavra "disfuncional". Apenas um sádico insistiria em ressuscitar essa concentração de pobreza, criminalidade e escolas deploráveis.
No entanto é isso o que defendem os entusiastas de Nova Orleans, tanto os nativos quanto os
turistas. Eles prevêem que, depois
de drenar a água e faxinar a cidade, vão restaurar Nova Orleans à
sua "glória" anterior.
Apenas um político, o presidente da Câmara, Dennis Hastert, ousou questionar a idéia de reconstruir Nova Orleans como ela era,
onde ela ficava. No dia 31 de agosto, em reunião com o conselho
editorial do "Daily Herald" de Arlington Heights, Illinois, Hastert
falou da insanidade geográfica de
reconstruir Nova Orleans. "Isso
não faz sentido para mim... E é
uma pergunta que devemos nos
fazer", disse ele. "A impressão
que se tem é que boa parte da cidade poderia ser terraplenada."
Hastert foi duramente criticado
por sua franqueza e seu bom senso. A senadora democrata Mary
Landrieu, da Louisiana, e outros
interpretaram suas observações
como prova da sede republicana
de destruição, quando o assunto
são as vítimas de catástrofes. Mas,
se lermos a entrevista inteira, poderemos concluir que Hastert estava dando voz a heresias, mas
não dizendo nada de feio nem
mesmo swiftiano.
Klaus Jacob manifestou apoio
às opiniões de Hastert em editorial publicado no "Washington
Post" em 6 de setembro.
Geofísico por formação, ele observou que o Katrina não foi nem
sequer o pior cenário possível em
matéria de furacões. Se o furacão
tivesse passado um pouco a oeste
de Nova Orleans, em lugar de um
pouco a leste, "a cidade teria sido
inundada em menos tempo e o
número de mortes teria sido
maior".
Ninguém questiona as desvantagens geográficas e oceanográficas de Nova Orleans: o fato de que
o golfo do México é um criadouro
perfeito para furacões, que as modificações impostas ao rio Mississippi para controlar as enchentes
tornaram Nova Orleans mais vulnerável a elas, ao lhe negar os depósitos de sedimentos de que precisa para manter sua cabeça acima d'água, e que a extração maciça de petróleo e gás da região prejudicou a estabilidade da terra.
"Nova Orleans tem o desejo natural de ser lago", disse à "Time" o
professor de ciências atmosféricas e da terra Timothy Kusky, da
Universidade St. Louis, na semana passada. Ao "Atlanta Journal-Constitution", Kusky falou:
"Nunca deveria ter sido erguida
uma cidade nesse lugar, para começo de conversa".
Barco
Por que ela foi construída? A cidade original foi construída sobre
a curva de terreno alto formado
por sedimentos depositados pelo
rio Mississippi ao longo de milhares de anos; vem daí seu apelido
de "Crescent City" (Cidade da
Meia-Lua). A partir do final dos
anos 1800, porém, e até o início do
século 20, construtores começaram a limpar e drenar os pântanos situados atrás da meia-lua,
chegando a ponto de jogar terra
no lago Pontchartrain para ampliar a cidade.
Muitos dos bairros de Nova Orleans de menor altitude são áreas
resgatadas do pântano. Mesmo
terrenos situados em áreas mais
"altas" sofriam enchentes até passarem pela intervenção de engenheiros. Pelos padrões históricos
da cidade de 400 anos, muitos dos
bairros mais inundados acabam
de descer do barco.
A decisão de reconstruir o sistema de diques de Nova Orleans
pode ser debatida se os moradores da cidade que foram removidos decidirem não retornar.
O governo federal, que administra o setor dos seguros contra
enchentes, vendeu apenas 85 mil
apólices residenciais e comerciais
-e isso numa cidade que tem 188
mil moradias habitadas.
A cobertura é restrita ao máximo de US$ 250 mil por imóvel comercial e US$ 100 mil por imóvel
residencial. Como os segurados
podem utilizar em outros lugares
o dinheiro que vão receber, não
existe garantia de que irão optar
por reconstruir suas casas em Nova Orleans, que vai continuar vulnerável ao extremo enquanto os
diques não forem refeitos.
Poucos proprietários de imóveis próprios ou alugados que
não possuem seguro dispõem de
meios para reconstruir -e da
disposição para isso. E quantos
dos trabalhadores ricos ou bem
de vida da cidade -as pessoas
que fornecem a base de contribuintes- irão retornar? Médicos, advogados, contadores e professores universitários terão empregos para os quais voltar?
Segundo o "Wall Street Journal", muitas empresas se transferirão. A não ser que o governo federal adote Nova Orleans e pague
suas contas pelos próximos 20
anos -uma proposta entre absurda e improvável de ser aceita-, a cidade não será reconstruída.
Barbara Bush, mãe do presidente, foi tachada de insensível e
de condescendente por ter dito
que muitos dos refugiados com
quem ela falou no Astrodome
prefeririam permanecer no Texas. Mas ela deve ter razão. Para
muitos dos desabrigados de Nova
Orleans, a destruição provocada
pelo Katrina pode acabar se revelando uma "destruição criativa",
para roubar um termo cunhado
por Joseph Schumpeter.
A não ser que o governo faça
um trabalho tremendo de incentivo à migração inversa, um efeito
colateral positivo do desenraizamento de milhares de vidas será o
de desconcentrar um dos piores
bolsões de miséria nos Estados
Unidos. As primeiras páginas dos
jornais no início do mês, como as
do "New York Times", ilustravam melhor do que eu poderia fazer como os cálculos econômicos
das pessoas fustigadas pelo Katrina podem contribuir para o fim
da cidade.
Ônibus
Em seus 19 anos de vida, todos
vividos no centro de Nova Orleans, Chavon Allen nunca tinha
se aventurado a ir mais longe do
que uma passagem de ônibus podia levá-la -ou seja, o mais longe
que ela já fora tinha sido a Baton
Rouge, no ano passado. Mas, agora que conhece Houston, ela pretende ficar. "Este é um novo começo para mim. Quero dizer, por
que jogar fora uma boa oportunidade, por que voltar para uma
coisa que a gente sabe que tem
problemas?", disse Allen, que está
ganhando US$ 5,15 por hora servindo frango num restaurante.
Nova Orleans não vai desaparecer da noite para o dia, é claro.
O Bairro Francês, Garden District, West Riverside, Black Pearl e
outras partes elevadas da cidade
vão sobreviver até serem destruídas por uma tempestade ainda
maior. Talvez até cresçam e floresçam como destinos turísticos e
lugares onde se possa viver a boa
vida. Mas seria um erro reerguer a
Atlântida americana.
Peço desculpas a Louis Armstrong, Fats Domino, Ernie K-Doe,
Allen Toussaint, Tipitina's, Dr.
John, Clarence "Frogman"
Henry, Jelly Roll Morton, Jessie
Hill, Lee Dorsey, The Meters, Robert Parker, Alvin Robinson, Joe
"King" Oliver, Kid Stormy Weather, Huey "Piano" Smith, Aaron
Neville e seus irmãos (o falsete é a
mais alta expressão masculina de
emoção), Frankie Ford, Chris
Kenner, Professor Longhair,
Wynton Marsalis e sua família,
Sidney Bechet e Marshall Faulk.
Aguardo suas mensagens iradas
no endereço slate.pressbox@
gmail.com.
Jack Shafer é jornalista e editor da revista "Slate", na qual este artigo foi originalmente publicado
Tradução de Clara Allain
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