São Paulo, segunda-feira, 18 de outubro de 2004

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ESPANHA

Para premiê espanhol, ONU deve liderar a ponte entre o Ocidente e os muçulmanos, para neutralizar o terrorismo

Zapatero defende diálogo com o islamismo

JESÚS CEBERIO
FÉLIX MONTEIRA
DO "EL PAÍS", EM MADRI

Ao completar ontem seis meses como primeiro-ministro da Espanha, José Luis Rodríguez Zapatero, 44, defendeu a idéia que lançou na Assembléia Geral da ONU de diálogo entre o Ocidente e os muçulmanos para neutralizar o terrorismo. Disse não ter uma solução detalhada, mas acredita que o secretário-geral Kofi Annan possa levar adiante o projeto.
Zapatero reiterou que a Guerra do Iraque foi um erro e disse que o fato de a Espanha ter retirado seus militares daquele país não impediu que, em outros campos, Madri e Washington continuem a colaborar de modo estreito.
Afirmou ainda que é possível que certos temas de "ampliação dos direitos da cidadania", como a adoção de crianças por casais homossexuais, provoquem discordâncias na hierarquia católica.
Eis os principais trechos da entrevista, concedida pelo premiê no Palácio de la Moncloa, sede do governo espanhol.
 

Pergunta - O sr. defendeu na ONU uma aliança do Ocidente com os muçulmanos para neutralizar o terrorismo. Como traduzir essa proposta em termos práticos?
José Luis Zapatero -
Expus a idéia ao secretário-geral Kofi Annan, para que a ONU ponha tal projeto em prática e o torne eficaz. A idéia, imprescindível, procura fortalecer a comunicação e a compreensão com os árabes e com todos os muçulmanos. A evolução da crise no Iraque e a situação entre Israel e Palestina estão produzindo um fosso entre sociedades. A possibilidade de diálogo vem sendo substituída pela linguagem do confronto. Annan demonstrou interesse. Espero que possamos caminhar.

Pergunta - A proposta de reforçar o papel da União Européia no conflito entre israelenses e palestinos vai no mesmo sentido?
Zapatero -
Existem dois obstáculos determinantes à aliança entre civilizações. Um está no Iraque e nas conseqüências da intervenção naquele país. O outro está na deterioração profunda da situação entre israelenses e palestinos. A Europa deve mobilizar todo o seu potencial político. Ela é hoje um espaço que representa os melhores valores.

Pergunta - Suas posições não seriam um pouco utópicas?
Zapatero -
Alguns me qualificaram de ingênuo. Mas acredito que precisamos fundamentar uma nova ordem internacional com mais ideais e menos mentiras.

Pergunta - Os EUA dariam mais poder à ONU?
Zapatero -
Uma coisa é a política num determinado momento, numa administração como a do presidente Bush. Outra coisa são os valores da sociedade americana. Esses valores voltarão a predominar. Há dias reli o discurso de posse do presidente Kennedy. Ele afirmava que os poderosos devem estar submetidos ao poder maior da ONU. Viveremos em breve a recuperação dos princípios da legalidade internacional, do multilateralismo e da relevância da ONU, pouco importa o resultado das eleições americanas de 2 de novembro.

Pergunta - Como Bush respondeu a seu discurso em Túnis, no qual o convidava a seguir o exemplo da Espanha e se retirar do Iraque?
Zapatero -
Disse-me que não estava satisfeito, e que as relações entre países amigos deveriam ser outras. Respondi que a sinceridade é um valor supremo, maior que a amizade. Continuaremos a ser amigos dos EUA. E continuarei a pensar que a Guerra no Iraque foi um erro.

Pergunta - Houve represálias?
Zapatero -
Em absoluto. Mas não há nenhum problema no relacionamento bilateral. Em outros campos a cooperação tem sido intensa, como no Afeganistão e na Venezuela. Somos países democráticos e soberanos.

Pergunta - Havia ligações entre os serviços secretos marroquinos e os atentados de 11 de março?
Zapatero -
É uma perfeita insensatez, como tantas outras que foram ditas depois de 11 de março. Os serviços de informação do Marrocos colaboraram e continuarão a colaborar contra o terrorismo islâmico. O Marrocos é importante para nós em questões como a imigração, a estabilidade e a modernização do conjunto de países árabes na África do Norte.

Pergunta - O sr. centra na política externa as mudanças que o diferenciam do governo anterior?
Zapatero -
Em seis meses o governo condensou em seis idéias o projeto que representamos: paz, Europa, mulher, cidadania, solidariedade e segurança. A paz se traduziu pela retirada das forças espanholas do Iraque e por meu discurso na ONU. A segunda está na aprovação da Constituição Européia. A terceira está na igualdade entre os sexos e o combate à violência contra a mulher. Com relação à cidadania, os exemplos são a reforma da Lei do Divórcio e o matrimônio entre homossexuais. Em seguida há as políticas sociais, com o aumento das bolsas, aumento de pensões e do salário mínimo. Há por fim o fortalecimento do Estado para o combate ao terrorismo. Avançamos nos direitos da cidadania, fazendo retroceder a intolerância.

Pergunta - Algumas medidas revoltaram a hierarquia católica.
Zapatero -
O governo nada inventou. Traduziu os valores da maioria social por meio da extensão dos direitos da cidadania. Era nosso projeto eleitoral, foi a opção dos eleitores. Pesquisas demonstram que mais de 60% dos cidadãos nos apóiam. O governo quer ter boas relações com a Igreja Católica. As urnas nos impelem democraticamente a transformar em leis realidades sociais. É o que estamos fazendo.

Pergunta - O sr. não teme a mobilização dos púlpitos?
Zapatero -
O governo não tem nenhum interesse em abrir conflitos com a igreja. Se a igreja não concorda com algumas leis, nós respeitaremos suas opiniões.

Pergunta - Mas não é só a igreja que faz restrições ao direito de adoção dos casais homossexuais.
Zapatero -
Para que um casal homossexual adote uma criança não é preciso, hoje, que a Espanha modifique sua legislação. O que estamos fazendo é reforçar os direitos das crianças adotadas.

Pergunta - Como o sr. reagiu às críticas que lhe foram feitas pelo arcebispo de Santiago?
Zapatero -
Creio que a igreja deva pertencer ao momento histórico que vivemos na Espanha. Quanto mais preservarmos os espaços de liberdade, melhor será para nós todos. Tivemos 11 de março, que foi um duro golpe para nossa sociedade. Muitos quiseram restrições aos direitos. É possível que, se fôssemos um outro país, teria ocorrido uma guinada conservadora. Mas não foi o que aconteceu. Estamos ampliando os direitos da cidadania e as liberdades. É uma garantia impressionante de futuro para o país.


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