São Paulo, domingo, 18 de novembro de 2007

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Ainda firme, base chavista vive incipiente desencanto

Popularidade segue alta, mas insatisfação com problemas de infra-estrutura alimenta críticas

Fim da concessão à emissora RCTV marca inflexão; analistas acreditam em possibilidade de surpresa em resultado do referendo

Fernando Llano-15.nov.06/Associated Press
Menina brinca com produtos comprados em um Mercal, mercado subsidiado pelo governo; força chavista vem dos bairros pobres

FABIANO MAISONNAVE
DE CARACAS

"Quatro anos atrás, era impossível entrar aqui por causa da questão política", explica o radialista e ex-dirigente opositor Jesús Torrealba, enquanto o jipinho Toyota vence a imensa ladeira. No fim da via cimentada, está La Pedrera, uma das centenas de favelas da capital venezuelana que, juntas, têm sido a principal força eleitoral do presidente Hugo Chávez ao longo de suas nove vitórias eleitorais em nove anos.
Localizado no alto de um morro da região de Antímano, parte do "barrio" La Pedrera -como os venezuelanos chamam as favelas- está praticamente isolado desde o último dia 30, quando um trecho da única via de acesso desmoronou, arrastando as precárias casas mais próximas.
Por causa do acidente, os serviços de luz e água foram interrompidos parcial ou totalmente, e o lixo se acumula em montanhas malcheirosas exploradas por ratos e cães.
Portando apenas um celular de modelo simples, Torrealba estaciona onde é possível chegar de carro. O resto da subida é completada a passos largos, enquanto ele começa o seu programa de uma hora, transmitido ao vivo cinco vezes por semana pela tradicional Rádio Caracas Rádio (RCR), do mesmo grupo da emissora oposicionista RCTV.
"O cenário é desolador. As pessoas estão em casas de bonecas, dessas que se cortam pela metade e se vê o interior", diz, descrevendo as construções tragadas pelo buraco.
Em seguida, Torrealba entrevista o pedreiro Lucio Colmenares, um dos moradores que trabalham no conserto da via. Apesar da camisa vermelha do recém-criado Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), e de se dizer chavista, pelo rádio certamente ele soou como um opositor radical.
"O governo está preocupado com a política, com a reeleição, e não dá atenção aos problemas. E tem uma pergunta que eu me faço e queria que o presidente escutasse: como é possível que até o Brasil tenha luz da Venezuela e essa vila aqui esteja toda escura?", vociferou, em referência a uma linha de transmissão que chega à Roraima, sem saber que havia um repórter brasileiro no local.
Colmenares não era o único descontente. No alto do morro, onde as casas são ainda mais precárias e a falta de infra-estrutura fica evidente no esgoto a céu aberto e no lixo acumulado, as reclamações continuam.

"Nós demos o voto"
Porta-voz do Conselho Comunitário (organizações de bairro criadas pelo governo), a chavista Maricarmem Pérez critica o recente fechamento dos refeitórios do governo federal, sob a alegação oficial de que a comida não pode ser transportada até em cima por causa do deslizamento.
"Queremos respeito do presidente. Ele está montado onde está porque nós demos esse voto. Queremos resposta dele também", diz Pérez, segundo ela, filiada ao PSUV.
As duras palavras contra Chávez saídas de sua base são a grande novidade política deste ano, diz Torrealba, 49, com a experiência de três anos e cerca de 600 programas "Radar dos Bairros", cada dia numa favela.
"Há protestos praticamente todos os dias, pelos mais variados motivos. Até dezembro do ano passado, as pessoas diziam "o presidente não sabe". Depois, começaram a envolvê-lo e agora dizem "Chávez me traiu'", afirma. "Depois de mais de oito anos, o governo Chávez se transformou num sujeito concreto: burocrata e corrupto."
Um dos principais motivos, para ele, é a política habitacional, que prevê o deslocamento de favelas inteiras para projetos habitacionais distantes, as "cidades socialistas".
O plano declarado de Chávez para transferir grandes contingentes populacionais explica a falta de investimento em infra-estrutura nas favelas de Caracas, diz Torrealba. "Ele não faz como os governos anteriores autoritários, com despejos à força. A sua estratégia é mais perversa: permite que os "barrios" desmoronem sozinhos."

Reforma e RCTV
O desencanto com Chávez que Torrealba percebe diariamente nas ruas tem sido também detectado nas recentes pesquisas de opinião sobre o referendo da reforma constitucional, daqui a duas semanas, que inclui a reeleição indefinida para presidente e a diminuição da jornada de trabalho.
"É a primeira vez que vemos uma oportunidade de surpresa em nove anos. Não é a opção mais provável, mas é possível", disse à Folha Luis Vicente León, do Instituto Datanálisis.
Para o analista, o fim da concessão da emissora oposicionista RCTV, em meados do ano, representou o maior ponto de inflexão dentro do chavismo, pois a medida era rejeitada pela maioria da da população.
"Pela primeira vez, os chavistas se deram conta de que Chávez poderia abusar de seu poder e tomar uma decisão que lhes afete", afirma León. "Isso se converte num elemento perigoso para ele, porque a população não gosta do coração dessa reforma: a reeleição indefinida, as limitações à propriedade privada, mudanças nas Forças Armadas e o fim da autonomia do Banco Central."
Por outro lado, a experiência nos bairros deu uma certeza a Torrealba que muitos na oposição não admitem: Chávez é realmente popular ali, e não só por causa das Missões, os programas educativos que distribuem renda ou são voltados ao atendimento de saúde e alcançam 4 de cada 10 venezuelanos, segundo o Datanálisis.
"A relação de Chávez com os setores populares é afetiva. A clientelista não é tão importante", diz o ex-porta-voz da Coordenadora Democrática, coalizão oposicionista criada em 2004 para a campanha do referendo revogatório do mandato presidencial.
"Chávez tem duas agendas políticas: uma ideológica e outra social. A social é a da redenção, da igualdade, do chamado à participação e que foi assumida com muita força pela população, sobretudo os mais pobres. É a agenda que lhe dá poder convocatório, apesar das promessas não cumpridas ou cumpridas parcialmente."
"A outra, a ideológica, não tem muito apelo, mas até hoje não causou maiores danos. Cada vez que ele diz que seu ideal é fazer uma só nação com Cuba e coisas assim, há uma resposta morna da população", afirma.
De forma mais científica, León chega a uma conclusão semelhante: mesmo com mais dificuldades eleitorais, a alta popularidade de Chávez continua. "Não se trata de uma queda de popularidade do presidente, não significa que ele esteja em perigo. Mas significa que os chavistas estão mais reticentes a novas propostas, e Chávez tem propostas novas em demasia."


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