|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO
Hamas "criará um Arafat"?
PETER DEMANT
ESPECIAL PARA A FOLHA
O Hamas é uma organização
anti-semita dedicada à destruição
do Estado de Israel. Mas proporciona às massas palestinas empobrecidas remédios, escolas e um
mínimo de Previdência Social e
faz isso mais eficaz e honestamente do que o Fatah, partido nacionalista secular que sempre dominou a OLP e substituiu sua militância revolucionária por corrupção e disposição para conviver
com o arquiinimigo Israel.
O paradoxo explica a vitória do
Hamas nas recentes eleições para
a Assembléia palestina. Há outras
causas para a virada, além da onipresente corrupção e do faccionalismo do Fatah. Após os acontecimentos dos últimos anos -incursões israelenses destruidoras,
o assassinato do xeque Ahmad
Yassin, líder do Hamas, e de outros militantes, a morte de Arafat- , tanto o presidente palestino, Mahmoud Abbas, quanto o
Hamas precisavam de uma pausa.
Excomungado internacionalmente como organização terrorista (forneceu a maior legião de
homens-bomba contra civis israelenses), o Hamas ansiava pelo
reconhecimento: seu acordo com
Abbas lhe trouxe um começo de
respeitabilidade. O Hamas teve
44% dos votos populares, mas
56% das cadeiras na Assembléia
-brigas internas no Fatah acabaram beneficiando o grupo islâmico. Vitória legítima, mesmo assim. Mas o fato de a maioria dos
palestinos na Cisjordânia e em
Gaza preferir, em última instância, a coexistência honrosa à sangria eterna, submeterá o Hamas a
pressões rumo à moderação.
O que o Hamas, híbrido de oposição religiosa fundamentalista e
submundo terrorista, fará agora
com seu novo poder? Há três cenários possíveis. O pessimista: renovar o confronto com Israel e
lançar uma terceira Intifada (o
Hamas não prorrogou o cessar-fogo informal que terminou em
janeiro). Agradaria aos "ultras",
mas seria impopular com as massas e impossibilitaria qualquer
acomodação, imprescindível,
com Abbas e a "velha-guarda".
Alternativa otimista: proclamar
um programa mais moderado e
negociar a paz com Israel: seria
automaticamente bloqueado por
sua própria ala extremista, mesmo se Israel cooperasse. Sobra
uma terceira via: manter o status
quo, continuar (talvez num governo de união nacional com o
Fatah) a retórica intransigente
sem fazer nada para afundar o navio, concentrar os esforços no gerenciamento das condições de vida dos palestinos e deixar Abbas
palavrear com Israel, mantendo-o, contudo, sob estrito controle.
Quadro inerentemente instável
que lembra o de 1992, quando interlocutores palestinos locais não
conseguiram fechar nenhum
acordo com Israel por serem
constrangidos por Arafat: afinal, a
única saída foi a negociação direta
OLP-Israel.
O Hamas repetirá, então, a evolução ideológica e política de seu
predecessor? Certos sintomas já
parecem apontar nesta direção
"pragmática": a alternância entre
a ação terrorista politicamente
útil, militarmente um bumerangue, e o "cessar-fogo"; um líder,
Khaled Meshaal, deixando entrever a miragem de uma futura coexistência; outro, Mahmoud Zahar, negando que haverá atenuação na prometida guerra "até o
extermínio do invasor"; entrevistas polidas (em inglês) com a mídia internacional, propaganda
(em árabe) sedenta de sangue...
Contudo há diferenças fundamentais, e elas dificultam tanto a
transformação do homem-bomba em diplomata quanto o espaço
dado a mediadores internacionais
que ambicionam facilitar tal metamorfose. Um partido que baseia
sua oposição a Israel não no "roubo" do território nacional pelo
"sionismo imperialista", mas no
antagonismo eterno entre islã e
judaísmo, terá maior dificuldade
em moderar sua cosmovisão do
que os partidos nacionalistas seculares na OLP. Também o contexto internacional e regional difere bastante da época do "processo de Oslo", que coincidiu com
o pós-Guerra Fria imediato.
A inclinação do mundo muçulmano a aceitar o Estado judeu diminuiu. Desde o 11 de Setembro,
acirram-se os conflitos entre muçulmanos e ocidentais. De ataques islâmicos terroristas até intervenções militares ocidentais e
de brigas sobre véus até mortos
por charges, cada semana traz novos incidentes. Não é um choque
de civilizações, mas entre duas
ideologias, democrático-pluralista e fundamentalista-totalitária:
cada visão tem seguidores tanto
ocidentais quanto muçulmanos.
O conflito israelo-palestino faz
doravante parte desse combate
global. Há na Europa quem gostaria de mitigar o boicote internacional, imposto ao Hamas até ele
reconhecer Israel e cessar o terror.
Mas a crescente polarização antimuçulmana dentro da Europa
não ajuda na tarefa de prensar o
Hamas num abraço diplomático.
Tempo de calma
A lógica política, as responsabilidades do poder, o cansaço com o
interminável conflito, tudo deveria levar o Hamas a sepultar seus
tabus e conversar com Israel. Fazer o jogo do reconhecimento poderia extrair concessões israelenses e alcançar para os palestinos
um acordo mais favorável que os
de Oslo ou Camp David. Porém aí
está o problema. Embora seja
concebível, tal evolução positiva
pede tempo e só ocorrerá se for
um tempo de calma. Nos anos 80
e 90 o processo de reconhecimento mútuo na base da "terra pela
paz", entre políticos seculares palestinos e a esquerda sionista, despertou a feroz resistência terrorista pela direita de ambas as nações.
Uma repetição desse processo de
aproximação, agora liderado pelas direitas, não conduziria de novo a um levante dos extremistas?
No caso de Israel, as eleições deveriam confirmar o Kadima, de
Sharon e Olmert, no poder: se um
governo centrista de Ehud Olmert
abrisse negociações com os radicais islâmicos, desde que estes deponham a violência, pelo menos
metade dos israelenses apoiaria.
Os colonos estão mais ou menos
sob controle. Porém a corrida armamentista nuclear com o Irã está esquentando: e o Irã e o Hamas
são aliados.
Qualquer movimento em direção à negociação atiçará dissensões internas no Hamas. Para
apaziguar seus militantes e manter Israel sob pressão, o Hamas
poderia "criar um Arafat": violência antiisraelense de baixo nível.
Só que a tática arrisca contra-ataques israelenses destruidores. Suponhamos que o Hamas abrandasse seu caráter fundamentalista, abrandasse seus laços com o
Irã ou a Síria e pusesse um fim ao
terror: outros continuariam o trabalho sujo -o Jihad Islâmico, as
Brigadas de Al Aqsa ou a Al Qaeda. Sem dúvida, veríamos alguns
palestinos distribuindo doces para comemorar, e os israelenses teriam dificuldade em diferenciar
entre esses palestinos e outros.
Conclusão: como o Hamas,
mais disciplinado do que o Fatah
e já com a legitimidade do extremismo, saberia melhor impor
suas decisões aos recalcitrantes,
uma evolução que o levasse a coexistir com Israel, se acontecer,
deixaria no fim uma oposição intrapalestina menor e mais isolada
-vantagem na construção da
paz. Mas não é para amanhã: como sempre no Oriente Médio, o
caminho para chegar lá está repleto de minas e homens-bomba.
Peter Demant, 54, é professor de Relações Internacionais na USP e autor de,
entre outros, "O Mundo Muçulmano".
Texto Anterior: Na posse histórica, Abbas desafia Hamas Próximo Texto: Tragédia: Previsão de filipinos é de 1.800 mortos sob a lama Índice
|