São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 2006

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ARTIGO

Hamas "criará um Arafat"?

PETER DEMANT
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Hamas é uma organização anti-semita dedicada à destruição do Estado de Israel. Mas proporciona às massas palestinas empobrecidas remédios, escolas e um mínimo de Previdência Social e faz isso mais eficaz e honestamente do que o Fatah, partido nacionalista secular que sempre dominou a OLP e substituiu sua militância revolucionária por corrupção e disposição para conviver com o arquiinimigo Israel.
O paradoxo explica a vitória do Hamas nas recentes eleições para a Assembléia palestina. Há outras causas para a virada, além da onipresente corrupção e do faccionalismo do Fatah. Após os acontecimentos dos últimos anos -incursões israelenses destruidoras, o assassinato do xeque Ahmad Yassin, líder do Hamas, e de outros militantes, a morte de Arafat- , tanto o presidente palestino, Mahmoud Abbas, quanto o Hamas precisavam de uma pausa.
Excomungado internacionalmente como organização terrorista (forneceu a maior legião de homens-bomba contra civis israelenses), o Hamas ansiava pelo reconhecimento: seu acordo com Abbas lhe trouxe um começo de respeitabilidade. O Hamas teve 44% dos votos populares, mas 56% das cadeiras na Assembléia -brigas internas no Fatah acabaram beneficiando o grupo islâmico. Vitória legítima, mesmo assim. Mas o fato de a maioria dos palestinos na Cisjordânia e em Gaza preferir, em última instância, a coexistência honrosa à sangria eterna, submeterá o Hamas a pressões rumo à moderação.
O que o Hamas, híbrido de oposição religiosa fundamentalista e submundo terrorista, fará agora com seu novo poder? Há três cenários possíveis. O pessimista: renovar o confronto com Israel e lançar uma terceira Intifada (o Hamas não prorrogou o cessar-fogo informal que terminou em janeiro). Agradaria aos "ultras", mas seria impopular com as massas e impossibilitaria qualquer acomodação, imprescindível, com Abbas e a "velha-guarda".
Alternativa otimista: proclamar um programa mais moderado e negociar a paz com Israel: seria automaticamente bloqueado por sua própria ala extremista, mesmo se Israel cooperasse. Sobra uma terceira via: manter o status quo, continuar (talvez num governo de união nacional com o Fatah) a retórica intransigente sem fazer nada para afundar o navio, concentrar os esforços no gerenciamento das condições de vida dos palestinos e deixar Abbas palavrear com Israel, mantendo-o, contudo, sob estrito controle. Quadro inerentemente instável que lembra o de 1992, quando interlocutores palestinos locais não conseguiram fechar nenhum acordo com Israel por serem constrangidos por Arafat: afinal, a única saída foi a negociação direta OLP-Israel.
O Hamas repetirá, então, a evolução ideológica e política de seu predecessor? Certos sintomas já parecem apontar nesta direção "pragmática": a alternância entre a ação terrorista politicamente útil, militarmente um bumerangue, e o "cessar-fogo"; um líder, Khaled Meshaal, deixando entrever a miragem de uma futura coexistência; outro, Mahmoud Zahar, negando que haverá atenuação na prometida guerra "até o extermínio do invasor"; entrevistas polidas (em inglês) com a mídia internacional, propaganda (em árabe) sedenta de sangue...
Contudo há diferenças fundamentais, e elas dificultam tanto a transformação do homem-bomba em diplomata quanto o espaço dado a mediadores internacionais que ambicionam facilitar tal metamorfose. Um partido que baseia sua oposição a Israel não no "roubo" do território nacional pelo "sionismo imperialista", mas no antagonismo eterno entre islã e judaísmo, terá maior dificuldade em moderar sua cosmovisão do que os partidos nacionalistas seculares na OLP. Também o contexto internacional e regional difere bastante da época do "processo de Oslo", que coincidiu com o pós-Guerra Fria imediato.
A inclinação do mundo muçulmano a aceitar o Estado judeu diminuiu. Desde o 11 de Setembro, acirram-se os conflitos entre muçulmanos e ocidentais. De ataques islâmicos terroristas até intervenções militares ocidentais e de brigas sobre véus até mortos por charges, cada semana traz novos incidentes. Não é um choque de civilizações, mas entre duas ideologias, democrático-pluralista e fundamentalista-totalitária: cada visão tem seguidores tanto ocidentais quanto muçulmanos. O conflito israelo-palestino faz doravante parte desse combate global. Há na Europa quem gostaria de mitigar o boicote internacional, imposto ao Hamas até ele reconhecer Israel e cessar o terror. Mas a crescente polarização antimuçulmana dentro da Europa não ajuda na tarefa de prensar o Hamas num abraço diplomático.

Tempo de calma
A lógica política, as responsabilidades do poder, o cansaço com o interminável conflito, tudo deveria levar o Hamas a sepultar seus tabus e conversar com Israel. Fazer o jogo do reconhecimento poderia extrair concessões israelenses e alcançar para os palestinos um acordo mais favorável que os de Oslo ou Camp David. Porém aí está o problema. Embora seja concebível, tal evolução positiva pede tempo e só ocorrerá se for um tempo de calma. Nos anos 80 e 90 o processo de reconhecimento mútuo na base da "terra pela paz", entre políticos seculares palestinos e a esquerda sionista, despertou a feroz resistência terrorista pela direita de ambas as nações. Uma repetição desse processo de aproximação, agora liderado pelas direitas, não conduziria de novo a um levante dos extremistas?
No caso de Israel, as eleições deveriam confirmar o Kadima, de Sharon e Olmert, no poder: se um governo centrista de Ehud Olmert abrisse negociações com os radicais islâmicos, desde que estes deponham a violência, pelo menos metade dos israelenses apoiaria. Os colonos estão mais ou menos sob controle. Porém a corrida armamentista nuclear com o Irã está esquentando: e o Irã e o Hamas são aliados.
Qualquer movimento em direção à negociação atiçará dissensões internas no Hamas. Para apaziguar seus militantes e manter Israel sob pressão, o Hamas poderia "criar um Arafat": violência antiisraelense de baixo nível. Só que a tática arrisca contra-ataques israelenses destruidores. Suponhamos que o Hamas abrandasse seu caráter fundamentalista, abrandasse seus laços com o Irã ou a Síria e pusesse um fim ao terror: outros continuariam o trabalho sujo -o Jihad Islâmico, as Brigadas de Al Aqsa ou a Al Qaeda. Sem dúvida, veríamos alguns palestinos distribuindo doces para comemorar, e os israelenses teriam dificuldade em diferenciar entre esses palestinos e outros.
Conclusão: como o Hamas, mais disciplinado do que o Fatah e já com a legitimidade do extremismo, saberia melhor impor suas decisões aos recalcitrantes, uma evolução que o levasse a coexistir com Israel, se acontecer, deixaria no fim uma oposição intrapalestina menor e mais isolada -vantagem na construção da paz. Mas não é para amanhã: como sempre no Oriente Médio, o caminho para chegar lá está repleto de minas e homens-bomba.


Peter Demant, 54, é professor de Relações Internacionais na USP e autor de, entre outros, "O Mundo Muçulmano".


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