São Paulo, domingo, 19 de março de 2006

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ARGENTINA

Trinta anos após instalação de junta militar, feridas da ditadura ainda estão presentes na sociedade argentina

Aniversário do golpe vira marco de Kirchner

Daniel Garcia/France Presse
Policiais argentinos prendem operário durante protesto contra a ditadura militar, em 30 março de 1982; o golpe que originou o regime faz 30 anos na sexta-feira


FLÁVIA MARREIRO
DE BUENOS AIRES

"Quando nos avisaram que já estava decidido o golpe e que vinha uma onda de seqüestros em La Plata, recebemos a instrução de trocar de domicílio. Com Cristina, junto com outro casal, fomos a uma pensão muito humilde para passar a noite do dia 24."
Era 1976. O relato, feito na última quinta-feira, é do presidente argentino, Néstor Kirchner, um dia após ter feito aprovar, a toque de caixa, uma lei que transforma em feriado o 24 de março, data de instalação da ditadura do país, que durou até 1983.
O feriado já começa a valer na próxima sexta, quando o golpe faz 30 anos, e é parte da estratégia de Kirchner para fazer da efeméride um marco de sua gestão, colher dividendos políticos (há eleição em 2007) e também a simpatia de organismos de direitos humanos, na Argentina parte importante da mobilização social.
Credenciais não lhe faltam: ex-militante estudantil na cidade universitária de La Plata (75 km de Buenos Aires), o presidente exibe fotos de amigos desaparecidos na sua mesa na Casa Rosada, tem como chanceler um ex-preso político por sete anos e meio, e, o mais importante, impulsionou, no ano passado, o fim das chamadas "lei do ponto final" e de "obediência devida", o que permitiu a reabertura de centenas de processos contra militares de menor patente que alegavam "obediência aos superiores".

Desaparecidos
A presença do regime, e suas seqüelas, na vida argentina, porém, extrapolam o plano reeleitoral de Kirchner e a expectativa pelos 207 presos que esperam julgamento.
Está, ainda, na ordem do dia.
Basta ver na TV a propaganda das Avós da Praça de Maio: "Se tem dúvidas sobre o seu passado, procure-nos". O slogan da entidade é destinado aos cerca de 400 filhos de desaparecidos, a maioria nascida em prisões clandestinas e entregue ilegalmente à adoção.
É abrir o jornal "Página 12" diariamente e encontrar anúncios de familiares de desaparecidos, estimados em 30 mil, observar as pichações nas ruas: "sem esquecimento nem perdão".
É ver o que se passa nesses dias com o deputado eleito Luis Patti, 53, e o agente de viagens Carlos Carassale, 29.
Patti foi eleito em outubro, com cerca de 400 mil votos, mas impedido de tomar posse por parlamentares kirchneristas que alegaram falta de "idoneidade moral". Linha dura da polícia, o deputado matou dois militantes em 1983. Patti e a sentença da Justiça dizem que se tratou de um "enfrentamento". Mas um laudo da época aponta marcas de tortura e sinais de que as vítimas receberam tiro a menos de um metro. O Ministério Público pediu a reabertura da ação. O deputado é ainda acusado de um seqüestro e de ajudar um militar acusado a fugir.
"Sou um perseguido político. Estou indo às embaixadas européias denunciar isso", disse o deputado à Folha na terça. Como não há condenações contra ele, juristas sustentam que é ilegal impedir que assuma o cargo. Ainda assim, é grande a chance de ele perder o mandato. Kirchner já fez discursos comparando-o a nazistas e detém o poder da comissão que decidirá, em 90 dias, o tema.
"Hoje é a esquerda que persegue. Se amanhã ganha um governo de direita, será o oposto", conjectura Patti, num despacho de uma deputada de seu partido, em que trabalha também Cecília Pando, mulher de um militar afastado por Kirchner, líder de um movimento para libertar o que chama de "presos políticos de hoje" -entre eles o ex-ditador Rafael Videla (1976-1981), sob prisão domiciliar por roubar bebês de desaparecidos, entre outros crimes.

Neto 81
É aí que entra Carlos Carassale. Na verdade, Leonardo Fossati, como descobriu há menos de um ano. Agora, o agente de viagens e ator amador de La Plata prepara-se para alterar o nome nos documentos dele e do filho, de 7 anos.
Em agosto de 2005, Fossati soube que seu pais são Leonardo Fossati, estudante de história, e Beatriz Ortega, secundarista -dois militantes seqüestrados em janeiro de 1977, de quem não se tem mais notícia. "Sou o neto 81." Ele é a penúltima das 82 pessoas "apropriadas" por militares quando crianças e depois localizadas pelas Avós da Praça de Maio.
Já adulto, Fossati soube que era adotado. A família de pequenos empresários que o criou recebeu de uma parteira o bebê "abandonado". Mesmo sem suspeita de que fosse filho de desaparecidos, procurou as Avós, porque a entidade virou referência no país em adoção ilegal e teste de DNA.
"Caí numa família de boa fé. Vi gente criada pelos torturadores dos pais", contou ele, em conversa com a Folha na quinta. Passava das 22h, ele saía do trabalho e parecia cansado.
Nos últimos dias, havia falado pela primeira vez com a imprensa. Participou também da gravação de um clip da banda de rock Bersuit Vergarabat, que lançará na efeméride uma música sobre a busca pelas crianças roubadas.
"Já passei em frente, mas nunca tive coragem de entrar", diz Fossati sobre a delegacia onde, segundo testemunhas, sua mãe deu à luz com mãos e pés amarrados.
Leonardo diz que, após descobrir sua origem, conheceu mais de 50 pessoas. "Fui jantar na casa de uma tia por parte de pai e ela perguntou do que eu gostava: "Tudo, menos beterraba". Ela chorou. Foi o mesmo que minha mãe disse quando a conheceu."
O que sente como personagem da história? Como seria se não houvesse o golpe? "Não tenho essa noção de ser da história. Quero devolver a pergunta. Não sei nem que rumo tomar hoje na minha vida, imagine pensar o que seria se tivesse crescido com os pais."


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