São Paulo, domingo, 19 de março de 2006

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ARTIGO

Do golpe e de instituições

MARCOS AGUINIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em meu livro "O Atroz Encanto de Ser Argentino", faço uma análise direta e sem rodeios das virtudes e misérias de meu país. As páginas do livro provocam lágrimas e riso, inclusive entre os brasileiros que já leram sua versão em português. A conclusão do livro é que vivemos e agimos num labirinto de paradoxos. Um dos paradoxos que mais causam perplexidade tem sido a atitude da sociedade diante dos golpes de Estado.
Contrariamente ao que se poderia supor, todos os golpes contaram com o apoio manifesto de grande parte da população. E, contrariamente ao que se poderia supor, não foram ataques cometidos exclusivamente pelas Forças Armadas. Talvez isso soe politicamente incorreto, mas é a dramática realidade, verificável nos documentos da época. A Argentina, porém, havia sido o país da América espanhola que desfrutara da mais longa estabilidade institucional, que foi o que permitiu seu enriquecimento fabuloso. Da sua organização nacional, em 1860, ao primeiro golpe de Estado, em 1930, passaram-se 70 anos durante os quais as Forças Armadas estiveram submetidas à Constituição e às leis. E o golpe de 1930 não teve o apoio dos oficiais na ativa.
A pergunta inevitável é: por que a sociedade apoiou os golpes de Estado? Por uma razão muito simples, que compartilhamos com os demais países da América Latina, África e grande parte da Ásia: a fragilidade das instituições e o pouco apreço por seu caráter sagrado. Jorge Luis Borges costumava dizer que temos dificuldades com a abstração, e por isso não compreendemos o que é o Estado nem o que são as instituições de uma democracia. Em lugar de aderirmos ao baluarte das instituições que garantem os direitos e explicitam os deveres, tendemos ao infantilismo autoritário. Vem daí a freqüência com que se adoram os caudilhos que terminam por tornar-se ditadores.


Os militares golpistas incharam-se de soberba. Auto-intitularam-se "salvadores da pátria"

Como reza a frase de lorde Acton, "o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente". O golpe de Estado é a profanação máxima da lei, porque viola a Constituição. A história de todos os golpes de Estado na Argentina mostra que, num primeiro momento, eles revelavam pressa em retornar à democracia, mas, na medida em que se repetiam, sua vergonha e sua pressa iam diminuindo claramente, até transformar-se na intenção de eternização no poder.
Sofremos o último golpe de Estado há 30 anos. A sociedade estava farta do desgoverno encabeçado pela inepta viúva de Perón; havia desordem sindical e um recrudescimento da guerrilha, formada por duas organizações, Montoneros e ERP (Exército Revolucionário do Povo). Este último era trotskista. Já os Montoneros eram um misto de nacionalismo, catolicismo, fascismo, marxismo e peronismo que teria deixado atônito o mais lúcido dos alquimistas.
Não obstante as duas organizações haviam começado a se desintegrar, e sua derrota era iminente. Teria sido salutar que essa derrota tivesse sido consumada pelas forças da segurança com o braço da lei, como foi feito na Itália com as Brigadas Vermelhas. Mas, como eu disse algumas linhas atrás, o desgoverno peronista escandalizava, e grande parte da sociedade impaciente, que não compreendia o valor das instituições, saudou o golpe de 24 de março de 1976.
Três escritores de primeira grandeza -Borges, Sabato e Castellani- foram convidados para um almoço com o general Jorge Rafael Videla. A igreja e a imprensa, de modo geral, não expressaram repúdio. A cúpula militar que havia promovido o golpe decidiu usar a desculpa do extermínio da guerrilha para impor um terror poucas vezes visto até então.
A Argentina foi devastada por prisões arbitrárias, violações de domicílios e execuções nas ruas. Foram instituídos locais de tortura e assassinatos secretos. Milhares de pessoas começaram a desaparecer. A violação das instituições não respeitava nenhum limite, porque não apenas se profanava a Constituição, como foi redigido um Ato Institucional paralelo à Constituição, ao qual os funcionários tinham que jurar obediência. Os pais temiam falar com seus filhos, para não dizer algo que pudesse terminar em tragédia. Multiplicaram-se as delações em todos os níveis, muitas delas falsas, movidas pela tortura.
Os militares golpistas incharam-se de soberba. Auto-intitularam-se "salvadores da pátria". Consideraram-se infalíveis e treinados para qualquer função. Não apenas ocuparam os cargos do governo, como também as reitorias e direções das universidades, os meios de comunicação, cargos diplomáticos, a direção de sindicatos, a direção de empresas. Podiam decidir entre a vida e a morte de qualquer pessoa.
Quando, ao cabo de seis anos, começaram a compreender que haviam perdido as simpatias iniciais e que aumentavam as denúncias internas e externas de seus crimes, eles apelaram para o recurso gasto de exacerbar o sentimento patriótico, com a Guerra das Malvinas. Na mesma Praça de Maio onde dezenas de milhares de pessoas repudiaram a ditadura, dezenas de milhares de pessoas se reuniram para aplaudir o ditador Galtieri por ter ordenado o desembarque nas ilhas.
Mas essa guerra foi o começo do fim. Em 10 de dezembro de 1983, a última ditadura argentina foi sepultada pela entusiástica recuperação da democracia.

O historiador e ensaísta argentino Marcos Aguinis, 71, é autor de "O Atroz Encanto de Ser Argentino" (Bei, 2002)

Tradução de Clara Allain


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