São Paulo, domingo, 19 de maio de 2002

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GUERRA SEM LIMITES

Khaled Darwich, detido na onda de prisões pós-11 de setembro, diz ter sido discriminado por sua origem árabe

Paulistano preso nos EUA relata "pesadelo"

GABRIELA ATHIAS
DA REPORTAGEM LOCAL

O paulistano de origem árabe Khaled Darwich, 21, preso há quase nove meses nos EUA, diz ter a impressão de "patinar num pesadelo": apesar de ter sentença de extradição para o Brasil decretada desde o dia 19 de fevereiro ainda não conseguiu sair do país.
Em vez de voltar ao Brasil, onde viveu até os 11 anos, ele, que estava preso no Mason Detention Center, em Memphis (Tennessee), foi transferido para duas prisões diferentes, ambas no Estado da Louisiana, no sul do país.
No dia 20 de setembro, nove dias depois do ataque terrorista aos EUA, Darwich foi preso pelo FBI (polícia federal americana) em sua casa, em Memphis.
Oficialmente, ele foi preso por ser um imigrante ilegal. Extra-oficialmente, foi considerado suspeito de participar de uma rede terrorista em razão de ser genro do terrorista egípcio El Sayyid Nosair, condenado à prisão perpétua, em 1996, pelo assassinato do rabino extremista Meir Kahane, ocorrido em novembro de 1990, em Nova York. Nosair também esteve envolvido no primeiro atentado aos edifícios do World Trade Center, em 1993.
Após a prisão de Darwich, um funcionário do Departamento de Estado norte-americano disse à Folha que "parentesco não é crime" e que o paulistano estava detido apenas para "averiguação".
Três meses depois que ele foi preso, a família de Darwich foi informada de que ele não era mais considerado suspeito de terrorismo. Estava preso em razão de estar ilegalmente no país.
Ele permaneceu preso no Mason Detention Center até março. De lá, foi transferido para uma prisão em Nova Orleans (Louisiana), onde ficou durante um mês. Na última segunda, Darwich foi transferido para uma prisão da qual nem sequer sabe o nome.
De lá, anteontem à noite, ele conversou com a Folha por telefone e pediu ajuda ao governo brasileiro. A seguir os principais trechos da conversa que durou cerca de 15 minutos.

Folha - Você tinha contato com El Sayyid Nosair, envolvido no atentado ao WTC em 1993 e condenado à prisão perpétua em 1996 pelo assassinato de um rabino?
Khaled Darwich
- O Sayyid telefona para minha mulher e para os outros filhos há mais de dez anos. Ele é o pai dela e eu jamais pediria que ele parasse de telefonar para a nossa casa. Não pensei que pudesse ter problemas por causa disso, até porque nunca falei com ele. Depois de 11 de setembro, o FBI passou a investigar as pessoas que cometeram o atentado contra o World Trade Center em 1993 e descobriram os telefonemas. Fui preso por causa disso. Não havia provas contra mim.

Folha - Como você foi tratado na primeira prisão, no Tennessee?
Darwich
- Fui colocado sozinho, num quarto [cela" fechado, muito pequeno. Eu só podia falar ao telefone uma vez, apenas durante 15 minutos. Fiquei cem dias nesse lugar. Havia outro árabe num quarto fechado perto do meu.

Folha - Você tomava sol?
Darwich -
Sempre chamavam a mim e ao outro árabe para pegar sol às 5h30 ou 6h, quando ainda estava muito frio.
Poderíamos ficar uma hora fora, mas eu sabia que, se saísse, ficaria doente, então não ia. Só tomávamos banho às segundas, quartas e sextas, durante 15 minutos. Depois cortavam a água.
Após cem dias vivendo nessa situação, me tiraram desse quarto e me colocaram com outros presos.

Folha - No Mason, os árabes eram tratados de forma diferente dos outros prisioneiros?
Darwich -
Só nós dois estávamos em quartos fechados. Esse outro árabe também era suspeito de terrorismo. Como não havia provas contra nós, usaram a desculpa da imigração [ilegal" para nos prender e investigar.

Folha - Houve castigos físicos?
Darwich -
Só mentais. No primeiro em dia que fui preso me colocaram num quarto, fecharam a porta e me deixaram umas oito horas sem água e comida.
Lá dentro era muito quente. Lembro de que suava sem parar. Depois desse tempo abriram a porta e me avisaram de que eu seria interrogado pelo FBI.
Três agentes me fizeram perguntas, só que eu estava cansado. Fiquei tonto. Eles usaram essa tática para eu ficar cansado e falar.

Folha - Depois de ficar provado que você não tinha ligação com terrorismo, o tratamento melhorou?
Darwich -
Sim. Mas os guardas da Mason me conheciam e diziam que escutavam todas as minhas conversas ao telefone.

Folha - Como você soube que não era mais considerado suspeito?
Darwich -
Agentes do FBI [polícia federal dos EUA" me disseram que não queriam "mais nada de mim" depois que fui colocado pela terceira vez num aparelho detector de mentiras. Aí os agentes foram à casa da minha mulher e avisaram a ela que eu não era mais considerado suspeito.

Folha - Onde você está agora?
Darwich -
Não sei o nome da prisão. É um lugar no meio do nada. Faz frio à noite e o cobertor da prisão é todo rasgado. Para me aquecer, enfio os braços na camisa.

Folha - Você recebeu informações sobre a data da sua extradição?
Darwich -
Cheguei aqui [à Louisiana" na segunda passada e ninguém sabe informar nada. Nos últimos três meses, fui informado três vezes de que seria extraditado para o Brasil num prazo de duas ou três semanas, mas continuo aqui. Pedi para minha irmã falar com o consulado brasileiro, mas ela disse que ninguém sabe o que está acontecendo. A imigração também não responde nada.

Folha - Você diz que a prisão de Nova Orleans era um inferno. Por quê?
Darwich -
Os muçulmanos não comem porco e isso é respeitado nas prisões. Lá, os funcionários olhavam para uma carne que todo mundo sabia que era de porco e diziam para a gente: "Comam que não é porco. Se não quiser isso, não come nada". E os funcionários xingavam os presos.

Folha - Como você está ligando para o Brasil de dentro da prisão?
Darwich -
Telefonei para um amigo aqui nos EUA e ele me colocou em contato com o país.

Folha - Você se lembra do Brasil?
Darwich -
Da minha casa, em São Paulo, da rua e da escola. Só isso. Não tenho mais parentes no Brasil, mas preciso muito de ajuda para sair daqui.



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