São Paulo, quarta-feira, 19 de outubro de 2005

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IRAQUE SOB TUTELA

Parte da população é saudosa do regime do ex-ditador iraquiano e se diz disposta a defendê-lo dos EUA

Saddam ainda é reverenciado em Bagdá

Nader Daoud/Associated Press
Homem exibe fotos de Saddam Hussein à venda do lado de fora de sua loja, em Amã, na Jordânia


KAREN MARÓN
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE BAGDÁ

"Defenderemos Saddam com nosso sangue e nossa alma." Foi com esse slogan, acompanhado de disparos de Kalashnikov, que centenas de partidários de Saddam Hussein se manifestaram na cidade sunita de Samarra, 125 km ao norte de Bagdá, um dia depois da primeira aparição pública do ex-presidente iraquiano após a guerra, em 28 de junho de 2004.
Faltando poucas horas para o início do primeiro julgamento de Saddam, no bairro de Adamiya, na capital iraquiana, não se vêem manifestações nem se ouvem disparos, mas as opiniões favoráveis ao ex-presidente se multiplicam, com seus partidários atacando a ilegitimidade do processo judicial. Esse trâmite legal foi precedido pela eleição legislativa e pelo recente plebiscito constitucional, que os defensores do ex-presidente consideram inválido.
Nesse reduto sunita, fica a mesquita de Abu Hanifa, dedicada aos fundadores da escola de direito muçulmano ortodoxo hanafita. O templo é uma das quatro principais mesquitas sunitas, a mais tolerante delas, e ali vivem muitos estudiosos do direito religioso sunita e outros clérigos muçulmanos. O lugar foi escolhido por Saddam para mostrar que continuava vivo em meio à ofensiva militar da coalizão. Ali ele prometeu aos iraquianos que sairiam vitoriosos.
Essa foi uma das últimas áreas de Bagdá a cair nas mãos dos EUA durante a guerra e foi onde a resistência agiu com mais ferocidade. Lá os soldados americanos e as forças da antiga Guarda Republicana iraquiana travaram, em volta da mesquita, um combate duro, por acreditarem que Saddam estava escondido em seu interior.
Saddam, que prometeu a vitória aos iraquianos, hoje está detido, acusado de crimes de guerra e genocídio, e na quarta-feira será submetido a um tribunal especial que poderá condená-lo à morte. Mas as pessoas continuam a admirá-lo. "Sim, Saddam é nosso presidente", afirma Omar Adani, vendedor de tapetes na rua Raguiba Khatum. "Quando ele nos governava, o Iraque era grande e respeitado. Tínhamos uma vida boa. O processo é uma farsa montada pelos EUA."
Apesar das crueldades cometidas pelo regime de Saddam e apesar de ele ter sido o único ditador da história a ter ordenado o uso de gás dos nervos contra civis desarmados, em Halabja e outras localidades curdas, e além de a repressão às insurreições de 1991, após o fim da Guerra do Golfo, ter deixado milhares de mortos entre curdos e xiitas do sul do país, o ditador, ao longo de três décadas, costurou fortes vínculos com a sociedade iraquiana, e esses vínculos não se desfazem com a ocupação pelos inimigos mais odiados nem com um discurso sobre liberdade e democracia.
"Ele é nosso líder e sempre o será. Não falávamos da simpatia que tínhamos por Saddam por medo. Os americanos não entendem o que ele significa para nós. Ele é um herói", afirma Omar.

Exercício do poder
Calculam-se em 200 mil as pessoas desaparecidas atrás das grades infernais das prisões iraquianas nos últimos 20 anos. Nas penitenciárias, praticava-se o fuzilamento dos presos sem processo. Em Abu Ghraib, por exemplo, em 1984, foram fuzilados 4.000 prisioneiros políticos. "A sra. sabe por que isso aconteceu? Eram inimigos de Saddam, e ele tinha que se proteger e proteger o país contra os traidores", justifica Zoher, ex-treinador físico, hoje taxista. "Era a única maneira que ele tinha de fazê-lo. Isso não é ditadura, é exercer o poder."
Instalada em sua casa luxuosa, Samira é mulher de um coronel aposentado do Exército de Saddam que desata a falar enquanto mostra um álbum de fotos nas quais se pode ver o acusado. "Nós amamos Saddam. Você o viu na televisão?", disse ela, referindo-se à primeira aparição pública do ex-presidente depois da guerra, no ano passado. "Ele é o símbolo da grandeza do Iraque."
"Faremos o possível para defendê-lo. Os americanos, em sua ignorância, acham que sempre vão conseguir seu intento. Mas, desta vez, não será tão fácil", diz Ibrahim, engenheiro químico que estudou na Espanha e hoje trabalha como comerciante.
Há 30 meses, uma multidão de milicianos e moradores do bairro, com fuzis Kalashnikov nas mãos, jurava vingança e gritava a mesma coisa que, de vez em quando, ainda se ouve hoje: "Saddam, sacrificaremos por você nossa alma e nosso corpo!". O resultado foi a insurgência iraquiana.

A argentina Karen Marón é especializada na cobertura de conflitos armados, como na Colômbia e no Oriente Médio

Tradução de Clara Allain


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