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Momento da renúncia é oportuno, diz Anderson
Para repórter que viveu na ilha, Fidel ainda paira no ar
LUCIANA COELHO
EDITORA-ADJUNTA DE MUNDO
Poucos estrangeiros conhecem Cuba e o regime de Fidel
Castro tão bem como o jornalista americano Jon Lee Anderson, e menos ainda estão dispostos a falar sobre o tema sem
tomar lados. Para o repórter da
revista "New Yorker", que morou na ilha de 1992 a 1995
(quando pesquisava para "Che
Guevara - Uma biografia") e
que fará do país tema de seu
próximo livro, a transição será
lenta e orquestrada.
E o momento para a renúncia
dificilmente poderia ser mais
propício aos olhos de Fidel.
Mas as mudanças virão, sobretudo as econômicas. Tudo,
claro, sob a sombra do "comandante", que, nas palavras dele,
"paira no ar" cubano e assim
permanecerá por ao menos
uma geração. Leia a seguir os
principais trechos da entrevista que Anderson, 50, concedeu
na noite de ontem à Folha, por
telefone, de Caracas, onde está
apurando uma reportagem.
FOLHA - Como recebeu a notícia?
JON LEE ANDERSON - Eu fiquei
surpreso inicialmente, embora
fosse algo pelo qual eu estivesse
esperando havia muito tempo.
Embora seja uma formalidade,
há a sensação de algo histórico.
FOLHA - Um ciclo se fecha?
ANDERSON - Sim e não. Com a
renúncia formal de Fidel, acaba
uma era. Mas ele ainda está vivo, e seu irmão mais novo e parceiro no poder o está sucedendo -não sabemos ainda se em
todos os cargos, mas em pelo
menos alguns deles. E ele
[Raúl] será a figura-chave na
transição nos próximos anos.
Mas não é o fim da Revolução
Cubana, nem o fim, ainda, do fidelismo. Estamos entrando em
uma era mais nuançada.
FOLHA - Por que este momento?
Tudo bem que a Assembléia Nacional se reúne para eleger o presidente neste domingo, mas ele podia ter
feito isso no ano passado.
ANDERSON - É difícil saber com
exatidão pelo que ele passou fisicamente, em termos médicos.
E, em termos de timing, além
da assembléia, várias coisas
aconteceram. Nos EUA, parece
agora que Barack Obama tem
uma boa chance de ser o próximo presidente. Os cubanos, e
Fidel especialmente, sempre
observaram com muita atenção
o que acontece nos EUA. Pode
ser que ele esteja tentando preparar o caminho para um diálogo que leve a algum tipo de reconciliação na qual ele tenha
um papel. O timing é bom. Estamos no comecinho do ano, as
primárias americanas avançaram, e há essas consultas, em
Cuba, com estudantes e sindicatos... Com a Assembléia, e
sendo primavera -porque o
verão é sempre difícil em Cuba-, era um bom momento.
FOLHA - O que podemos esperar da
Assembléia? Uma mera confirmação de Raúl ou ouviremos outros nomes, como o do vice-presidente Carlos Lage, que tem sido citado?
ANDERSON - A minha impressão
é que, no fim das contas, Raúl
vai sucedê-lo em alguns postos
importantes, mas pode ser que
alguém como Lage receba um
dos postos que Fidel tradicionalmente mantinha. Não sei.
Mas é interessante a menção a
Lage, pois de todos os políticos
mais graduados em Cuba ele é o
que eu acredito ser o mais querido e bem reputado. É considerado um lealista e um moderado ao mesmo tempo, é da nova geração, é extremamente
honesto. O comportamento dele é aprovado inclusive por cubanos críticos da Revolução. E
ele é bem quisto fora do país.
FOLHA - Quanto é possível dissociar o governo transitório de Fidel?
ANDERSON - Enquanto estiver
vivo, Fidel vai exercer muita
influência. Ele paira no ar. Mas
eu acho que veremos algumas
reformas moderadas, sobretudo econômicas. Algumas poderão ser lidas pelos cubanos como políticas -mas coisas mais
dentro do partido, algo que para o mundo exterior não aparentaria nenhuma concessão.
Um esforço para aumentar a
base de apoio.
FOLHA - O que eles poderiam fazer,
no curto prazo?
ANDERSON - As pessoas precisam receber mais. Os salários
[em torno de US$ 10 e US$ 15,
todos pagos pelo governo] são
muito baixos. Ninguém sobrevive disso, e as pessoas são forçadas a entrar na economia
clandestina. Há uma contradição entre o discurso e a realidade. E o desafio para o partido
derrubar o mercado negro é
melhorar a economia. Já melhorou, mas as pessoas não
conseguem ainda chegar ao fim
do mês. Isso é fonte de preocupação e até depressão em Cuba.
Você tem de ser um revolucionário muito estrito para engolir
o discurso da meritocracia.
FOLHA - E quanto às restrições como acesso à internet, que os estudantes citaram no debate universitário, podemos ter mudança?
ANDERSON - Acho possível, mas
estamos falando do pós-Fidel.
Eu fui à Universidade de Tecnologia da Informação e era
fascinante, porque eles falavam
de tecnologia e futuro e não tinham acesso. Bizarro. Eles disseram que dão acesso gradual...
para nós que vivemos fora disso
parece algo inaceitável. Claro,
muita gente sabe como contornar esse problema. Mas eu acho
que as pessoas na casa dos 40,
50 anos entendem que a revolução da informação está aí e
tem de ser dividida. Eles podem
colocar barreiras por um tempo, mas vão acabar cedendo.
FOLHA - E na vida dos cubanos comuns, muda algo com a renúncia?
ANDERSON - Nos últimos anos,
até por causa da ajuda venezuelana, as coisas melhoraram um
pouco. Há mais eletricidade,
hospitais melhoraram. Fidel
gosta de ser visto como o provedor das necessidades básicas.
Já quanto a roupas, comida, livros, viagens -nesses pontos
mais coisa precisa ser feita, e isso cai de novo no que estávamos falando sobre concessões
na economia. Acho que veremos pequenos avanços.
FOLHA - O sr. acha que os cubanos
se surpreenderam com a renúncia?
ANDERSON - Não, acho que eles
já a esperavam. Claro, tudo que
envolve Fidel é dramático, mas
eles terão tempo para digerir.
De qualquer forma, sempre será notável. Fidel é único. Ele
ocupa um patamar quase mitológico entre os líderes vivos.
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