São Paulo, quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

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Momento da renúncia é oportuno, diz Anderson

Para repórter que viveu na ilha, Fidel ainda paira no ar

LUCIANA COELHO
EDITORA-ADJUNTA DE MUNDO

Poucos estrangeiros conhecem Cuba e o regime de Fidel Castro tão bem como o jornalista americano Jon Lee Anderson, e menos ainda estão dispostos a falar sobre o tema sem tomar lados. Para o repórter da revista "New Yorker", que morou na ilha de 1992 a 1995 (quando pesquisava para "Che Guevara - Uma biografia") e que fará do país tema de seu próximo livro, a transição será lenta e orquestrada. E o momento para a renúncia dificilmente poderia ser mais propício aos olhos de Fidel.
Mas as mudanças virão, sobretudo as econômicas. Tudo, claro, sob a sombra do "comandante", que, nas palavras dele, "paira no ar" cubano e assim permanecerá por ao menos uma geração. Leia a seguir os principais trechos da entrevista que Anderson, 50, concedeu na noite de ontem à Folha, por telefone, de Caracas, onde está apurando uma reportagem.

 

FOLHA - Como recebeu a notícia?
JON LEE ANDERSON -
Eu fiquei surpreso inicialmente, embora fosse algo pelo qual eu estivesse esperando havia muito tempo. Embora seja uma formalidade, há a sensação de algo histórico.

FOLHA - Um ciclo se fecha?
ANDERSON -
Sim e não. Com a renúncia formal de Fidel, acaba uma era. Mas ele ainda está vivo, e seu irmão mais novo e parceiro no poder o está sucedendo -não sabemos ainda se em todos os cargos, mas em pelo menos alguns deles. E ele [Raúl] será a figura-chave na transição nos próximos anos. Mas não é o fim da Revolução Cubana, nem o fim, ainda, do fidelismo. Estamos entrando em uma era mais nuançada.

FOLHA - Por que este momento? Tudo bem que a Assembléia Nacional se reúne para eleger o presidente neste domingo, mas ele podia ter feito isso no ano passado.
ANDERSON -
É difícil saber com exatidão pelo que ele passou fisicamente, em termos médicos. E, em termos de timing, além da assembléia, várias coisas aconteceram. Nos EUA, parece agora que Barack Obama tem uma boa chance de ser o próximo presidente. Os cubanos, e Fidel especialmente, sempre observaram com muita atenção o que acontece nos EUA. Pode ser que ele esteja tentando preparar o caminho para um diálogo que leve a algum tipo de reconciliação na qual ele tenha um papel. O timing é bom. Estamos no comecinho do ano, as primárias americanas avançaram, e há essas consultas, em Cuba, com estudantes e sindicatos... Com a Assembléia, e sendo primavera -porque o verão é sempre difícil em Cuba-, era um bom momento.

FOLHA - O que podemos esperar da Assembléia? Uma mera confirmação de Raúl ou ouviremos outros nomes, como o do vice-presidente Carlos Lage, que tem sido citado?
ANDERSON -
A minha impressão é que, no fim das contas, Raúl vai sucedê-lo em alguns postos importantes, mas pode ser que alguém como Lage receba um dos postos que Fidel tradicionalmente mantinha. Não sei. Mas é interessante a menção a Lage, pois de todos os políticos mais graduados em Cuba ele é o que eu acredito ser o mais querido e bem reputado. É considerado um lealista e um moderado ao mesmo tempo, é da nova geração, é extremamente honesto. O comportamento dele é aprovado inclusive por cubanos críticos da Revolução. E ele é bem quisto fora do país.

FOLHA - Quanto é possível dissociar o governo transitório de Fidel?
ANDERSON -
Enquanto estiver vivo, Fidel vai exercer muita influência. Ele paira no ar. Mas eu acho que veremos algumas reformas moderadas, sobretudo econômicas. Algumas poderão ser lidas pelos cubanos como políticas -mas coisas mais dentro do partido, algo que para o mundo exterior não aparentaria nenhuma concessão. Um esforço para aumentar a base de apoio.

FOLHA - O que eles poderiam fazer, no curto prazo?
ANDERSON - As pessoas precisam receber mais. Os salários [em torno de US$ 10 e US$ 15, todos pagos pelo governo] são muito baixos. Ninguém sobrevive disso, e as pessoas são forçadas a entrar na economia clandestina. Há uma contradição entre o discurso e a realidade. E o desafio para o partido derrubar o mercado negro é melhorar a economia. Já melhorou, mas as pessoas não conseguem ainda chegar ao fim do mês. Isso é fonte de preocupação e até depressão em Cuba. Você tem de ser um revolucionário muito estrito para engolir o discurso da meritocracia.

FOLHA - E quanto às restrições como acesso à internet, que os estudantes citaram no debate universitário, podemos ter mudança?
ANDERSON -
Acho possível, mas estamos falando do pós-Fidel. Eu fui à Universidade de Tecnologia da Informação e era fascinante, porque eles falavam de tecnologia e futuro e não tinham acesso. Bizarro. Eles disseram que dão acesso gradual... para nós que vivemos fora disso parece algo inaceitável. Claro, muita gente sabe como contornar esse problema. Mas eu acho que as pessoas na casa dos 40, 50 anos entendem que a revolução da informação está aí e tem de ser dividida. Eles podem colocar barreiras por um tempo, mas vão acabar cedendo.

FOLHA - E na vida dos cubanos comuns, muda algo com a renúncia?
ANDERSON -
Nos últimos anos, até por causa da ajuda venezuelana, as coisas melhoraram um pouco. Há mais eletricidade, hospitais melhoraram. Fidel gosta de ser visto como o provedor das necessidades básicas. Já quanto a roupas, comida, livros, viagens -nesses pontos mais coisa precisa ser feita, e isso cai de novo no que estávamos falando sobre concessões na economia. Acho que veremos pequenos avanços.

FOLHA - O sr. acha que os cubanos se surpreenderam com a renúncia?
ANDERSON -
Não, acho que eles já a esperavam. Claro, tudo que envolve Fidel é dramático, mas eles terão tempo para digerir. De qualquer forma, sempre será notável. Fidel é único. Ele ocupa um patamar quase mitológico entre os líderes vivos.


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