São Paulo, quarta-feira, 20 de abril de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

PALAVRA PAPAL

Homilia de Ratzinger defende o fundamentalismo

DA REDAÇÃO

Leia íntegra da homilia, de Joseph Ratzinger, da missa "pro eligendo papa", celebrada antes da primeira votação do conclave.

 

Nessa hora de grande responsabilidade, escutemos com particular atenção ao que o Senhor disse com suas próprias palavras. Citarei apenas alguns trechos de três sermões que se aplicam diretamente a um momento como este.
O primeiro sermão oferece um retrato profético da figura do Messias retrato que recebe todo o seu significado a partir do momento em que Jesus lê o texto na sinagoga de Nazaré e diz: "Hoje será realizada esta escritura". No cerne do texto profético encontramos uma palavra que, ao menos à primeira vista, parece contraditória. O Messias, falando de seu trabalho, diz que lhe foi ordenado "promulgar o ano da misericórdia do Senhor, um dia de vingança para o nosso Deus".
Escutemos, com alegria, o anúncio do ano de misericórdia: a misericórdia divina impõe limites ao mal foi o que nos disse o Santo Padre. Jesus Cristo é a misericórdia divina personificada: encontrar Cristo significa encontrar a misericórdia de Deus.
O mandato de Cristo se torna nosso mandato através da unção sacerdotal; somos chamados a promulgar não apenas com palavras, mas na vida, e com os eficazes signos dos sacramentos -"o ano de misericórdia do Senhor".
Mas o que queria dizer Isaías quando anunciou "o dia de vingança para o nosso Deus?" Jesus, em Nazaré, em seu sermão sobre o texto profético, não pronunciou essa palavra concluiu anunciando o ano de misericórdia. Talvez tenha sido esse o motivo do escândalo que se desenrolou depois de sua prédica? Não o sabemos. De qualquer forma, o Senhor ofereceu seu comentário autêntico quanto a essas palavras quando morreu na cruz. "Ele carregou nossos pecados em seu corpo no madeiro da cruz", disse São Pedro. E São Paulo, na epístola aos Galateus, escreveu que "Cristo correu o risco de maldição, sob os termos da lei, tornando-se ele mesmo uma maldição, em nosso lugar, como está escrito: maldito o que pende da cruz, porque em Jesus Cristo a benção de Abraão se transferiu aos homens, e recebemos a promessa do Espírito mediante a fé".
A misericórdia de Cristo não é uma graça fácil de obter, não supõe uma banalização do mal. Cristo porta em seu corpo e em sua alma todo o peso do mal, toda sua força destrutiva. Ele molda e transforma o mal em sofrimento, torna-o foco de seu amor sofredor. O dia da vingança e o ano da misericórdia coincidem no mistério pascal, no Cristo morto e ressuscitado. É essa a vingança de Deus: Ele mesmo, na pessoa de Seu filho, sofre por nós.
Quanto mais formos tocados pela misericórdia do Senhor, tanto mais entramos em solidariedade com seu sofrimento tornamo-nos disponíveis para completar em nossa carne "aquilo que falta ao sofrimento de Cristo".
Passemos ao segundo sermão, a epístola aos efésios. Nela, os temas substanciais são três. Em primeiro lugar, os ministérios e carisma da Igreja, como dons do Senhor ressuscitado e ascendido ao céu; segundo, o amadurecimento da fé e do conhecimento do Filho de Deus, como condição e conteúdo da unidade do corpo de Cristo; e, por fim, a participação comum no crescimento do corpo de Cristo, ou seja, a transformação do mundo em comunhão com o Senhor.
Permitam-me enfatizar apenas dois pontos: o primeiro é o caminho em direção à "maturidade de Cristo"; assim dispõe, de forma um pouco simplificada, o texto italiano. Mais precisamente deveríamos, de acordo com o texto grego, falar da "medida da plenitude de Cristo", a qual somos convocados a emular para que nos tornemos realmente adultos em nossa fé. Não devemos permanecer crianças na fé, em estado de menoridade. E em que consiste sermos crianças na fé? Responde São Paulo: "Significa sermos arrastados para lá e para cá por qualquer vento doutrinário". Uma descrição muito atual!
Quantos ventos doutrinários experimentamos nesses últimos decênios, quantas correntes ideológicas, quantos modos de pensamento... O pequeno barco do pensamento de muitos cristãos se viu freqüentemente agitado por essas ondas arremessado de um extremo ao outro: do marxismo ao liberalismo, e até mesmo à libertinagem; do coletivismo ao individualismo radical; do agnosticismo ao sincretismo, e muito mais. A cada dia nascem novas seitas, e as palavras de São Paulo sobre a possibilidade de que a astúcia, nos homens, seja causa de erros, são confirmadas.
Ter uma fé clara, de acordo com o Credo da Igreja, muitas vezes foi rotulado como fundamentalista. Enquanto o relativismo, que se "deixa arrastar para cá e para lá pelos ventos doutrinários", parece ser o único sistema aplicável aos tempos modernos. Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo, que não reconhece nada como definitivo e toma como medida última das coisas o eu e as vontades do eu.
Nós, em lugar disso, tomamos como norma uma outra medida: o Filho de Deus, o verdadeiro homem. É ele a medida do verdadeiro humanismo. "Adulta" não é uma fé que acompanha a moda e as últimas novidades; adulta e madura é uma fé profundamente enraizada na amizade com Cristo. É esta a amizade que se abre a tudo aquilo que é bom e nos oferece critérios para discernir entre verdadeiro e falso, engano e verdade.
Essa é a fé adulta que devemos amadurecer, a essa fé devemos conduzir a Igreja de Cristo. E é essa fé e só a fé -que cria unidade e se realiza na caridade. São Paulo pode ser citado, quanto a isso em contraste com as contínuas peripécias daqueles que são como crianças arrastadas pelas ondas, e oferece belas palavras: "Encontrai a verdade na caridade", uma fórmula fundamental da existência cristã. Em Cristo, coincidem verdade e caridade. Na medida em que nos aproximamos de Cristo, também em nossa vida a verdade e a caridade fincam raízes. Caridade sem verdade parece cega; verdade sem caridade é como um "címbalo que tilinta".
Consideremos agora os Evangelhos, de cuja riqueza quero extrair apenas duas pequenas observações. O Senhor pronuncia essas palavras maravilhosas: "Não os chamo mais servos; chamo-os amigos".
Tantas vezes e com razão sentimos ser apenas servos inúteis. Apesar disso, o Senhor nos chama de amigos, nos torna seus amigos, nos doa sua amizade. O Senhor define a amizade de maneira dupla: não existem segredos entre amigos. Cristo nos dizia tudo aquilo que ouvia do Pai; nos doava sua plena confiança e, com ela, igualmente, o conhecimento. Revelava-nos suas vontades, seu coração. Exibia sua ternura por nós, seu amor apaixonado, que ia ao extremo de sofrimento que lhe foi reservado na cruz. Confiava-se totalmente a nós, nos dava o poder de falarmos com seu eu: "Este é meu corpo..."; "eu te absolvo".
Confiou a nós seu corpo, a Igreja. Confiou às nossas débeis mentes, às nossas débeis mãos, a sua verdade: o mistério do Deus Pai, Filho e Espírito Santo; o mistério de Deus que "amou o mundo a ponto de dar-lhe seu filho unigênito". Fez de nós seus amigos e como respondemos?
O segundo elemento com o qual Jesus define a amizade é a comunhão de vontades. "Idem velle idem nolle" era a definição de amizade até mesmo entre os romanos. "Sois meus amigos; fazei aquilo que vos ordeno". A amizade com Cristo coincide com a terceira linha do Pai Nosso: "Seja feita a Vossa vontade, assim na terra como no céu".
No momento do Calvário, Jesus transformou nossa vontade humana rebelde em vontade conforme e unida à vontade divina. Sofreu todo o drama de nossa autonomia e entregando nossa vontade às mãos de Deus, nos deu a verdadeira liberdade. "Não como eu quero, mas como Vós quereis". Nessa comunhão de vontades se realiza nossa redenção; ser amigo de Jesus quer dizer tornar-se amigo de Deus. Quanto mais amamos Jesus, quanto mais o conhecemos, tanto mais cresce a nossa verdadeira liberdade, cresce a alegria da redenção. Graças a Jesus, por sua amizade!
O outro elemento do Evangelho que eu gostaria de destacar é o discurso de Jesus sobre crescer e frutificar "o homem foi criado para crescer e frutificar, e para que seus frutos permaneçam".
É aqui que se constata o dinamismo da existência do cristão, do apóstolo: foram criados para crescer. Devemos viver animados por uma santa inquietação a inquietação de divulgar a todos o dom da fé, da amizade com Cristo. Na verdade, o amor e a amizade de Deus nos foram dados para que cheguem aos outros. Recebemos a fé para dá-la aos outros somos sacerdotes para servir aos outros. E devemos gerar um fruto que permaneça. Todos os homens desejam deixar um traço que permaneça. Mas o que permanece? Não o dinheiro; as edificações tampouco permanecem; depois de algum tempo, mais ou menos longo, todas essas coisas se esvaem.
A única coisa que permanece eternamente é a alma humana, o homem criado por Deus para a eternidade.
O fruto que permanece é aquele que semeamos na alma humana o amor, o conhecimento; o gesto capaz de tocar o coração; a palavra que abre a alma às alegrias do Senhor. Devemos sair e pregar a palavra do Senhor, porque isso ajuda a gerar frutos, frutos permanentes. Só dessa maneira a terra se tornará de vale de lágrimas em jardim de Deus.
Retornemos enfim, ainda uma vez, à epístola aos efésios. Diz a epístola, nas palavras do salmo 68, que Cristo, ao subir aos céus, "distribuiu dons aos homens".
Os vencedores distribuem dons. E esses dons são apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e professores. O nosso ministério é um dom de Cristo ao homem, para construir seu corpo o mundo novo.
Que vivamos assim o nosso ministério como dom de Cristo ao homem. Mas nessa hora, sobretudo, peçamos com insistência ao Senhor que, depois dos grandes dons do Papa João Paulo 2, nos dê novamente um pastor fiel ao seu coração, um pastor capaz de guiar o rebanho na direção do conhecimento de Cristo, de seu amor, da verdadeira alegria. Amém.

Tradução de Paulo Migliaci

Texto Anterior: Grupo Opus Dei manifesta "grande felicidade" pela eleição de Bento 16
Próximo Texto: O novo papa: Conservadorismo nunca foi dissimulado
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.