São Paulo, quarta-feira, 20 de abril de 2005

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O NOVO PAPA

Conservadorismo nunca foi dissimulado

Papa acredita na atemporalidade de valores religiosos e minimiza "evolução das mentalidades"; diz haver risco de a fé ficar "supérflua"

Arturo Mari/Osservatore Romano/France Presse
Papa Bento 16 aparece no balcão da basílica de São Pedro, após ser eleito pelo conclave


JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Em 9 de outubro de 2002, o então cardeal Joseph Ratzinger fez um longo pronunciamento de 6.573 palavras sobre a "Atualidade Doutrinal do Catecismo da Igreja Católica", questão fundamental porque entrava na intimidade do ensino da fé cristã.
A palavra justiça apareceu apenas três vezes, mesmo assim em sentido figurado ("anjos da justiça"). As palavras igualdade, humilde, pobres ou pobreza, solidariedade, paz ou trabalhador estavam ausentes. Em compensação, o hoje papa Bento 16 se referiu 34 vezes à fé. As sete vezes em que aparece, a palavra amor está sempre acompanhada de um complemento que a associa a Deus.
O documento, em português nos arquivos eletrônicos do Vaticano, é exemplar ao expor uma concepção quase atemporal do catolicismo, com valores que independem da história e da pauta de questões fincadas na contemporaneidade dos fiéis.
No mesmo pronunciamento, Ratzinger criticou a reforma litúrgica "concebida de maneira unilateralmente intelectual" e "culturalmente empobrecida".
Disse, a respeito, que, com uma interpretação orientada para a comunidade, "que desejava olhar só para as exigências dos presentes, o grande alcance cósmico da liturgia foi reduzido de maneira preocupante".
Essa mesma visão atemporal da igreja e da fé aparece em entrevista que deu em outubro de 2004 ao semanário italiano "Panorama". Afirmou, então: "Quanto mais uma religião se aproxima do mundo, mais se torna supérflua".
Disse na entrevista que "os novos movimentos cristãos, como os evangélicos, os carismáticos ou as igrejas livres da Alemanha estão em pleno crescimento porque defendem com unhas e dentes os grandes valores morais contra a evolução das mentalidades".
É justamente a "evolução das mentalidades" que estava no centro das preocupações de João 23 e da igreja do Concílio Vaticano 2º. A igreja de Bento 16 é aparentemente outra. Menos permeável às inovações, mais apegada à grade de valores vistos como imutáveis.
Mesmo assim, ele declarou não ser "um grande inquisidor" quando examina os fatores negativos da igreja. A inquisição é maliciosamente evocada contra o novo papa porque ele foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, sucessora da inquisição.
A frase ontem mais lembrada de Ratzinger foi a de sua homilia da semana passada, espécie de plataforma pessoal ao conclave. Nela, atacou "a ditadura do relativismo que não reconhece nada como definitivo e que, em última medida, reconhece apenas o próprio eu e seus desejos".
No último 18 de março Ratzinger participou das comemorações dos 40 anos da "Gaudium et Spes", documento conciliar visto como a Constituição social da igreja. Foi nele que se apoiou a esquerda católica nos anos 60 e 70.
O atual papa, nas 993 palavras que pronunciou, uma única vez falou em social e, nas 19 em que pronunciou a palavra justiça, dissociou-a das preocupações temporais. Disse que o mundo aplaude a igreja quando ela se preocupa com os pobres. Mas que a igreja é criticada quanto o conceito de justiça é ampliado e se refere ao direito à vida, "da concepção à morte natural", menção ao aborto e às células-tronco.
Ratzinger é inequívoco quando se refere à verdade. Ela deriva exclusivamente dos valores atemporais agregados ao catolicismo. O que compromete a aceitação da verdade em poder de outras religiões. Qualificou os demais ramos cristãos de "deficientes". E é restritivo quanto à visão do Vaticano com o mundo islâmico.
É nessa linha que Bento 16 qualificou de "enorme erro" e de "decisão contra a história" a possível entrada da Turquia, país muçulmano, na União Européia.
Não acredita que os judeus continuarão a sê-lo eternamente. "Está nas mãos de Deus como e quando a unificação entre judeus e cristãos" vai acontecer.
Defensor de uma moralidade tradicional, seria injusto taxar o novo papa de homofobia. Qualificou de "deplorável" que homossexuais sejam objeto de "violência e malícia nas palavras e nas ações". A dignidade intrínseca de qualquer pessoa deve ser sempre respeitada, disse ele. Mas afirmou que a união de homossexuais, "mais ou menos equivalente ao casamento", é condenável, já que "a sociedade não reconhece a natureza da família nem seu caráter fundamental".


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