São Paulo, segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Morales avança em política indígena, mas interação ainda é problema

Em dois anos no cargo, presidente ampliou espaço e direitos de povos originários

FLÁVIA MARREIRO
ENVIADA ESPECIAL A LA PAZ

"Quando a gente via uma mulher de saia rodada tradicional no palácio de governo, era um cozinheira ou uma faxineira, com certeza. Agora pode ser uma secretária, a presidente da Assembléia Constituinte", comemora o taxista aimará José Apaza, 32, questionado sobre o que pensa de dois anos de mandato do primeiro presidente indígena da história da Bolívia.
Com variações, o discurso é ouvido aqui e ali em La Paz, bastião do presidente Evo Morales e da "mudança" no altiplano boliviano, onde, majoritariamente, a população se declara indígena. Até vozes críticas vêem impacto simbólico do governo Morales, quebrando uma espécie de acordo tácito de que as funções de Estado são de monopólio branco.
A ONU segue apontando na Bolívia manifestações de racismo. E, na arrastada crise que envolveu o processo de aprovação do texto da nova Constituição, não faltaram xingamentos à presidente da Constituinte, a líder quéchua Silvia Lazarte.
A nova Carta é justamente a aposta do governo para sair da esfera simbólica e ampliar os direitos indígenas, mas o texto abriu um grande debate no país. Estudiosos e líderes camponeses elogiam a proposta. Críticos acusam Morales de empregar vícios de revanchismo étnico em discursos e de criar na Constituição uma separação entre indígenas e não-indígenas, no lugar de buscar integrar e desenvolver o mosaico de populações.
"Ao contrário do que dizem seus defensores, os índios querem a modernidade. Não querem estar isolados", diz o analista Fernando Molina. "Os críticos falam como se o modelo importado ocidental tivesse solução para tudo. Não tem", defende o antropólogo Xavier Albó. Para ele, a Constituição é um avanço, mas poderia pôr mais ênfase em espaços de convivência intercultural.

Justiça e participação
A Constituição -cujo texto ainda pode ser modificado para acomodar visões da oposição- irá a referendo. Mas o texto aprovado pela Assembléia Constituinte em dezembro tem semelhanças com a Carta brasileira, de 1988, e outras da região, com o reconhecimento dos indígenas, seus direitos à terra, ao pagamento pela exploração de recursos naturais nela e à organização de seus territórios ancestrais (aqui, como no Brasil, várias terras estão em processo de remarcação).
Em outros trechos, como na garantia de participação política e no reconhecimento da Justiça indígena comunitária em igualdade de condições com a Justiça ordinária, a proposta é considerada por indígenas a mais "descolonizadora" já feita.
Segundo Albó, um dos pontos altos da Carta é adotar o pluralismo jurídico, o que significa levar em conta usos e costumes das populações em todas as decisões judiciais. Os representantes da Justiça indígena terão participação paritária com os da Justiça ordinária na corte máxima do país.
O texto diz que a Justiça comunitária indígena será a lei no "âmbito dos territórios indígenas", hoje, em geral, áreas de terras rurais comunitárias. Mas, como a Carta possibilita que municípios e regiões se considerem indígenas, movimentos sociais já se articulam para se organizar dessa forma e tentar voltar aos modelos de gestão e Justiça comunitárias.
Num país onde linchamentos são comuns nas periferias e pequenas cidades, críticos temem que o reconhecimento da Justiça indígena incentive a prática, mesmo fora das comunidades declaradas indígenas.
"Justiça com as próprias mãos não tem nada a ver com Justiça comunitária. Isso é ausência de Justiça, descrédito com as formas de controle social. Pode ocorrer aqui, numa favela do Brasil ou no pólo Norte", rebate Albó. Ele lembra que a Justiça indígena estará sujeita à Constituição, signatária de declarações internacionais de direitos humanos e de gênero.
A Carta prevê ainda que a eleição dos integrantes da Assembléia Legislativa "garantirá a participação proporcional das nações e dos povos indígenas". O trecho é considerado controverso porque não se sabe como se dará a proporcionalidade.
A Bolívia tem grande população indígena urbana, concentrada no altiplano, e grupos menores rurais espalhados nas chamadas terras baixas.
O vice-presidente Álvaro García Linera via na proporcionalidade, em dezembro, uma demanda dos povos minoritários difícil de pôr em prática, dado que 62% da população se autodeclara indígena.


Texto Anterior: Futuro de Fidel será selado em 24/2
Próximo Texto: Chávez volta a criticar Uribe; colombiano vai à Europa
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.