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Morales avança em política indígena, mas interação ainda é problema
Em dois anos no cargo, presidente ampliou espaço e direitos de povos originários
FLÁVIA MARREIRO
ENVIADA ESPECIAL A LA PAZ
"Quando a gente via uma
mulher de saia rodada tradicional no palácio de governo, era
um cozinheira ou uma faxineira, com certeza. Agora pode ser
uma secretária, a presidente da
Assembléia Constituinte", comemora o taxista aimará José
Apaza, 32, questionado sobre o
que pensa de dois anos de mandato do primeiro presidente indígena da história da Bolívia.
Com variações, o discurso é
ouvido aqui e ali em La Paz,
bastião do presidente Evo Morales e da "mudança" no altiplano boliviano, onde, majoritariamente, a população se declara indígena. Até vozes críticas vêem impacto simbólico do
governo Morales, quebrando
uma espécie de acordo tácito de
que as funções de Estado são de
monopólio branco.
A ONU segue apontando na
Bolívia manifestações de racismo. E, na arrastada crise que
envolveu o processo de aprovação do texto da nova Constituição, não faltaram xingamentos
à presidente da Constituinte, a
líder quéchua Silvia Lazarte.
A nova Carta é justamente a
aposta do governo para sair da
esfera simbólica e ampliar os
direitos indígenas, mas o texto
abriu um grande debate no
país. Estudiosos e líderes camponeses elogiam a proposta.
Críticos acusam Morales de
empregar vícios de revanchismo étnico em discursos e de
criar na Constituição uma separação entre indígenas e não-indígenas, no lugar de buscar
integrar e desenvolver o mosaico de populações.
"Ao contrário do que dizem
seus defensores, os índios querem a modernidade. Não querem estar isolados", diz o analista Fernando Molina. "Os críticos falam como se o modelo
importado ocidental tivesse solução para tudo. Não tem", defende o antropólogo Xavier Albó. Para ele, a Constituição é
um avanço, mas poderia pôr
mais ênfase em espaços de convivência intercultural.
Justiça e participação
A Constituição -cujo texto
ainda pode ser modificado para
acomodar visões da oposição-
irá a referendo. Mas o texto
aprovado pela Assembléia
Constituinte em dezembro tem
semelhanças com a Carta brasileira, de 1988, e outras da região, com o reconhecimento
dos indígenas, seus direitos à
terra, ao pagamento pela exploração de recursos naturais nela
e à organização de seus territórios ancestrais (aqui, como no
Brasil, várias terras estão em
processo de remarcação).
Em outros trechos, como na
garantia de participação política e no reconhecimento da Justiça indígena comunitária em
igualdade de condições com a
Justiça ordinária, a proposta é
considerada por indígenas a
mais "descolonizadora" já feita.
Segundo Albó, um dos pontos altos da Carta é adotar o
pluralismo jurídico, o que significa levar em conta usos e
costumes das populações em
todas as decisões judiciais. Os
representantes da Justiça indígena terão participação paritária com os da Justiça ordinária
na corte máxima do país.
O texto diz que a Justiça comunitária indígena será a lei no
"âmbito dos territórios indígenas", hoje, em geral, áreas de
terras rurais comunitárias.
Mas, como a Carta possibilita
que municípios e regiões se
considerem indígenas, movimentos sociais já se articulam
para se organizar dessa forma e
tentar voltar aos modelos de
gestão e Justiça comunitárias.
Num país onde linchamentos são comuns nas periferias e
pequenas cidades, críticos temem que o reconhecimento da
Justiça indígena incentive a
prática, mesmo fora das comunidades declaradas indígenas.
"Justiça com as próprias
mãos não tem nada a ver com
Justiça comunitária. Isso é ausência de Justiça, descrédito
com as formas de controle social. Pode ocorrer aqui, numa
favela do Brasil ou no pólo Norte", rebate Albó. Ele lembra que
a Justiça indígena estará sujeita à Constituição, signatária de
declarações internacionais de
direitos humanos e de gênero.
A Carta prevê ainda que a
eleição dos integrantes da Assembléia Legislativa "garantirá
a participação proporcional das
nações e dos povos indígenas".
O trecho é considerado controverso porque não se sabe como
se dará a proporcionalidade.
A Bolívia tem grande população indígena urbana, concentrada no altiplano, e grupos
menores rurais espalhados nas
chamadas terras baixas.
O vice-presidente Álvaro
García Linera via na proporcionalidade, em dezembro, uma
demanda dos povos minoritários difícil de pôr em prática,
dado que 62% da população se
autodeclara indígena.
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