São Paulo, domingo, 21 de agosto de 2005

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CORRIDA DO OURO

Boatos de que gaúcho morto há 132 anos teria herdeiros espalhados pelo Cone Sul geram avalanche de processos

Herança de comendador atrai milhares

MAELI PRADO
DE BUENOS AIRES

Mais de 100 anos se passaram, mas a incrível história da herança de um comendador do século 19 prova que o tempo só favorece os boatos. Um confuso testamento escrito por Domingos Faustino Correa em 1873, no Rio Grande do Sul, legando grandes extensões de terras desencadeou uma corrida do ouro que até hoje envolve milhares de candidatos a herdeiros em todo o mundo.
Não restou nada a receber, diz a Justiça do Estado, e o processo, que tramitou por 107 anos, foi transitado em julgado em 1984, encerrando a possibilidade de apelações.
Mesmo assim, na Argentina e no Uruguai há escritórios de advocacia especializados no caso -alguns com até 7.000 clientes- que prometem iniciar os trâmites legais para cobrar a herança do comendador ou intermediar a venda dos direitos ao patrimônio para multinacionais. Quem os contrata é gente que há muitos anos ouviu falar de uma fortuna que mudaria a vida de sua família.
Há até fóruns de discussão na internet onde "herdeiros" da Argentina, Paraguai, Uruguai e Colômbia, entre outros países, trocam informações sobre o caso.
De acordo com a historiadora Virgilina Fidelis de Palma, que escreveu um artigo sobre o caso para a revista Justiça & História, editada pelo Centro de Memória da Justiça do Rio Grande do Sul, a história se estendeu para tantos países e por tanto tempo por causa das disposições caprichosas do testamento do comendador. Entre outros pontos, Correa, que em algumas versões enriqueceu explorando minas de ouro e pedras preciosas, determinou que os bens que legou às suas "crias" (como chamava filhos tidos com escravas) poderiam ser usufruídos apenas até pelos bisnetos destas.
"Declaro, por último, para evitar futuras dúvidas, que a administração dos bens legados (às crias) durará até a extinção da quarta geração dos legatários, isto é, os bisnetos, quando cessará o usufruto do campo dos Canudos e se devolverá a meus herdeiros ou legítimos sucessores", diz um trecho do testamento adaptado para o português atual pela pesquisadora.
Ou seja, após quatro gerações, as terras deveriam ser transferidas de volta aos legítimos herdeiros. É o tipo de disposição praticamente impossível de cumprir, afirma ela.
As determinações fora do padrão, assim como a grande quantidade de beneficiários, deram posteriormente a uma legião de advogados infinitos argumentos para contestá-lo. As várias apelações, inclusive por parte do governo, requerendo impostos, somadas à lentidão da Justiça fizeram com que o processo tramitasse até 1984 -o maior tempo da história da Justiça do Estado.

"Ouro caído do céu"
A febre pela herança do comendador surgiu nos anos 70, quando uma nova inventariante anexou ao processo uma lista, que a historiadora considera "fantasiosa", de mais de 100 supostos bens.
Foi quando o caso chegou à imprensa brasileira e de outros países. O jornal paraguaio "El País", por exemplo, publicou em 1980 uma reportagem intitulada "A maior herança do mundo se reparte no Brasil". Outros diários falavam em "ouro caído do céu".
Não demorou para que o Fórum de Rio Grande (RS), onde correu o processo, começar a ser bombardeado de pedidos de habilitação à herança -a estimativa é que foram mais de 100.000. Muita gente foi induzida a acreditar, ou acreditou por conta própria, por causa do mesmo sobrenome, que era parente do comendador e tinha direito a parte da herança.
De acordo com a pesquisadora, que é especializada em história gaúcha e que trabalha no Fórum, os irmãos da mulher de Correa, Leonor Maria, receberam a sua parte da herança, assim como amigos aos quais ele deixou o direito de usufruir lotes de terras.
Mas mesmo hoje, diz ela, os pedidos continuam a chegar. Atualmente há um pedido para que o processo, que ocupa uma sala inteira no Fórum, seja tombado como documento histórico.


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