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CORRIDA DO OURO
Boatos de que gaúcho morto há 132 anos teria herdeiros espalhados pelo Cone Sul geram avalanche de processos
Herança de comendador atrai milhares
MAELI PRADO
DE BUENOS AIRES
Mais de 100 anos se passaram,
mas a incrível história da herança
de um comendador do século 19
prova que o tempo só favorece os
boatos. Um confuso testamento
escrito por Domingos Faustino
Correa em 1873, no Rio Grande
do Sul, legando grandes extensões
de terras desencadeou uma corrida do ouro que até hoje envolve
milhares de candidatos a herdeiros em todo o mundo.
Não restou nada a receber, diz a
Justiça do Estado, e o processo,
que tramitou por 107 anos, foi
transitado em julgado em 1984,
encerrando a possibilidade de
apelações.
Mesmo assim, na Argentina e
no Uruguai há escritórios de advocacia especializados no caso
-alguns com até 7.000 clientes-
que prometem iniciar os trâmites
legais para cobrar a herança do
comendador ou intermediar a
venda dos direitos ao patrimônio
para multinacionais. Quem os
contrata é gente que há muitos
anos ouviu falar de uma fortuna
que mudaria a vida de sua família.
Há até fóruns de discussão na
internet onde "herdeiros" da Argentina, Paraguai, Uruguai e Colômbia, entre outros países, trocam informações sobre o caso.
De acordo com a historiadora
Virgilina Fidelis de Palma, que escreveu um artigo sobre o caso para a revista Justiça & História, editada pelo Centro de Memória da
Justiça do Rio Grande do Sul, a
história se estendeu para tantos
países e por tanto tempo por causa das disposições caprichosas do
testamento do comendador. Entre outros pontos, Correa, que em
algumas versões enriqueceu explorando minas de ouro e pedras
preciosas, determinou que os
bens que legou às suas "crias" (como chamava filhos tidos com escravas) poderiam ser usufruídos
apenas até pelos bisnetos destas.
"Declaro, por último, para evitar futuras dúvidas, que a administração dos bens legados (às
crias) durará até a extinção da
quarta geração dos legatários, isto
é, os bisnetos, quando cessará o
usufruto do campo dos Canudos
e se devolverá a meus herdeiros
ou legítimos sucessores", diz um
trecho do testamento adaptado
para o português atual pela pesquisadora.
Ou seja, após quatro gerações,
as terras deveriam ser transferidas
de volta aos legítimos herdeiros. É
o tipo de disposição praticamente
impossível de cumprir, afirma ela.
As determinações fora do padrão, assim como a grande quantidade de beneficiários, deram
posteriormente a uma legião de
advogados infinitos argumentos
para contestá-lo. As várias apelações, inclusive por parte do governo, requerendo impostos, somadas à lentidão da Justiça fizeram
com que o processo tramitasse até
1984 -o maior tempo da história
da Justiça do Estado.
"Ouro caído do céu"
A febre pela herança do comendador surgiu nos anos 70, quando
uma nova inventariante anexou
ao processo uma lista, que a historiadora considera "fantasiosa", de
mais de 100 supostos bens.
Foi quando o caso chegou à imprensa brasileira e de outros países. O jornal paraguaio "El País",
por exemplo, publicou em 1980
uma reportagem intitulada "A
maior herança do mundo se reparte no Brasil". Outros diários
falavam em "ouro caído do céu".
Não demorou para que o Fórum de Rio Grande (RS), onde
correu o processo, começar a ser
bombardeado de pedidos de habilitação à herança -a estimativa
é que foram mais de 100.000. Muita gente foi induzida a acreditar,
ou acreditou por conta própria,
por causa do mesmo sobrenome,
que era parente do comendador e
tinha direito a parte da herança.
De acordo com a pesquisadora,
que é especializada em história
gaúcha e que trabalha no Fórum,
os irmãos da mulher de Correa,
Leonor Maria, receberam a sua
parte da herança, assim como
amigos aos quais ele deixou o direito de usufruir lotes de terras.
Mas mesmo hoje, diz ela, os pedidos continuam a chegar. Atualmente há um pedido para que o
processo, que ocupa uma sala inteira no Fórum, seja tombado como documento histórico.
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