São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2001

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PRÓXIMA AMEAÇA
Governo decide comprar 300 milhões de doses de vacina contra doença extinta em 1980

EUA se preparam contra varíola

Associated Press
Visão microscópica da bactéria de antraz feito em um centro de pesquisa do exército dos EUA


ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
DE SAN FRANCISCO

Ataques com pó de bactéria antraz em cartas podem ser apenas o início de um novo terrorismo biológico. Autoridades americanas já se preparam para atentados com vírus contagiosos, como o da varíola, que se espalha com rapidez e contra o qual praticamente não há tratamento. A varíola foi declarada extinta em 1980.
"É revoltante imaginar que, no começo do século 21, estejamos de novo falando em varíola, depois de uma das grandes vitórias da humanidade, que foi sua extinção", disse à Folha Frederick Murphy, ex-chefe do Centro de Doenças Infecciosas do governo federal e diretor-emérito da Faculdade de Veterinária da Universidade da Califórnia em Davis.
Na guerra biológica, usam-se organismos vivos (bactérias, vírus e fungos) como armas que podem matar ou provocar pânico.
"Espalhar deliberadamente o vírus da varíola seria um crime muito pior do que o holocausto", opina Mark Wheelis, professor de microbiologia da Universidade da Califórnia e autor de livros sobre história da guerra biológica. "E isso prejudicaria principalmente os países mais pobres, porque, mesmo que começasse nos EUA, a epidemia se espalharia pelo mundo, afetando mais os lugares com poucos recursos."
O vírus da varíola invade o organismo pela boca ou pelo nariz. Depois de um período de incubação de cerca de duas semanas, os primeiros sintomas são febre alta, dor de cabeça, abdominal e nas costas e, em certos casos, delírios. Erupções na pele se espalham pelo corpo. Quem sobrevive fica marcado. A morte, que acontece em 30% dos casos, se deve a hemorragias, colapso cardiovascular e infecções secundárias.
Segundo Wheelis, para um atentado com varíola, "bastaria que dois voluntários aceitassem ser infectados e passassem alguns dias viajando de avião".

Vacina para 300 milhões
Os EUA encomendaram na semana passada 300 milhões de doses de vacina antivaríola. Com 281 milhões de habitantes, o país tem apenas 15 milhões de doses em estoque. E teme-se que, fabricadas há 40 anos, nem sejam mais eficazes. Pior: ninguém mais tem imunidade contra a doença, porque a vacinação acabou em 1972 e o efeito dura cerca de 15 anos.
"A esperança é que, caso haja um ataque, seja possível conter uma epidemia", disse à Folha o infectologista Baruch Blumberg, ganhador do prêmio Nobel de medicina de 1976, pela descoberta do vírus da hepatite B.
Oficialmente, o vírus da varíola só existe em dois laboratórios de segurança máxima: um em Atlanta (EUA), outro em Novosibirsk (Sibéria Ocidental, Rússia). Segundo Murphy, a decisão de comprar mais vacina pode estar ligada a uma recente visita de representantes americanos ao laboratório russo, onde teriam constatado segurança insuficiente.
Historicamente próximo de cientistas soviéticos, Murphy esteve várias vezes em Novosibirsk e voltou há cinco dias da Rússia. Segundo ele, os chefes do laboratório que guarda o vírus "são muito bem-intencionados". E o lugar é tão remoto que, apesar de não haver dinheiro "para pagar dezenas de guardas o tempo todo", é improvável que amostras do vírus tenham sido tiradas de lá.
O principal temor do cientista é o programa secreto de armas biológicas que a ex-URSS manteve até seu colapso, em 1990. A partir desse projeto, que chegou a empregar mais de 30 mil pessoas, o vírus pode ter ido parar em mãos erradas. Iraque e Coréia do Norte são os países de quem o serviço secreto americano mais suspeita.
Uma pessoa infectada com a varíola passa a doença para cerca de 25 outras. Um único caso, na antiga Iugoslávia, em 1972, exigiu 20 milhões de doses de vacina e providências maciças de quarentenas para evitar uma epidemia.
O alarme das autoridades dos EUA decorre principalmente de uma simulação, feita em junho passado, de um ataque terrorista com o vírus da varíola. Nesse jogo de guerra, um suposto grupo de extremistas afegãos borrifa o vírus em shopping centers de três cidades: Oklahoma City, Atlanta e Filadélfia. Ninguém percebe nada até dez dias depois, quando erupções surgem na pele das vítimas.
O caos toma conta do país. Em três semanas, 16 mil pessoas estão doentes. Em dois meses, são 3 milhões, dos quais 1 milhão morre.
Desde 1925, um tratado internacional proíbe o uso de armas biológicas. Mas o texto sempre foi amplamente desrespeitado, inclusive pelos EUA e pela ex-URSS, que desenvolveram seus projetos secretos de bioguerra.


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