São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2001

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Especialista em epidemiologia do Exército dos EUA fala dos riscos do antraz e da varíola

Uso de vírus teria alcance global

CLAUDIO ANGELO
EDITOR-ASSISTENTE DE CIÊNCIA

Os EUA não poderiam conter uma epidemia de varíola hoje caso cem pessoas fossem infectadas. A opinião é do microbiologista Clarence James Peters, coronel reformado do Exército americano e especialista em prevenção de catástrofes biológicas.
Peters, 61, sabe bem do que está falando. Coordenador do Centro de Defesa Biológica da Universidade do Texas em Galveston, ele criou e dirigiu o departamento de avaliação de doenças do instituto militar de pesquisa de doenças infecciosas do país -cuja função é justamente a defesa biológica.
Até o ano passado, também chefiava a Seção de Patógenos Especiais do CDC (Centro de Controle de Doenças). Já comandou expedições de "caça" ao vírus ebola na África e ajudou a conter uma epidemia daquele micróbio em Reston, no Estado da Virgínia, em 1989 -felizmente, de um tipo de ebola que só ataca macacos.
O incidente foi relatado no best-seller "Zona Quente", de Richard Preston, que inspirou o filme "Epidemia", de 1995. "Acho que eu era o Dustin Hoffman", brincou, numa entrevista recente ao jornal "The New York Times".
Em entrevista à Folha, C.J., como prefere ser chamado, afirmou que a "epidemia postal" de antraz é "uma coisa psicológica". "Nós cometemos um erro nessa história. Nossas autoridades de saúde não vieram a público para dizer qual era o risco."

Folha - O sr. já teve de lidar com potenciais catástrofes biológicas, como a que aconteceu nos EUA com o ebola em 1989. Alguma vez imaginou que fosse ver o que está acontecendo agora?
Clarence James Peters -
Nunca pensei que fosse ver ataques por carta. Pensava que até pudessem usar cartas, mas que as pessoas que as usassem não teriam um preparado [de antraz" suficientemente fino ou concentrado. Você precisa de partículas muito pequenas para entrar no pulmão. Então um ataque por carta talvez pudesse contaminar alguém pela pele, mas isso pode ser facilmente resolvido por antibióticos. Quem fez isso tinha grãos muito finos. É difícil obtê-los.

Folha - Quem poderia manipular e fazer grãos finos?
Peters -
Você precisa de dois tipos de gente. Um tipo, o chefe, é alguém com conhecimentos em microbiologia. E um laboratório de microbiologia, onde você possa cultivar grandes quantidades de bactéria. Outra pessoa é alguém com treinamento técnico ou militar, talvez com algum conhecimento industrial e de microbiologia, para fazer os grãos no tamanho certo. Alguém com experiência na área, habilidades específicas e recursos.

Folha - O sr. já chegou a cogitar que isso pudesse ser obra de grupos de ódio dos EUA?
Peters -
É possível. Mas a maior parte desses grupos não tem habilidade técnica. Eles não têm tecnologia suficiente nem para fazer explodir bombas direito.

Folha - Há muita mitologia em torno de quem poderia produzir esporos de antraz ou cultivar vírus. Há quem diga que qualquer pessoa com conhecimentos de microbiologia e pouco dinheiro poderia, num laboratório simples, produzir armas biológicas. Isso é verdade?
Peters -
Eles conseguiriam infectar umas poucas dezenas de pessoas. Para criar uma arma de terror em massa, tem de ter um laboratório especial de microbiologia.

Folha - O antraz não passa de pessoa a pessoa e até penicilina pode dar conta dele. Por que ele está sendo usado em vez de algo mais letal, como o vírus da febre amarela, por exemplo?
Peters -
Primeiro, antraz é fácil de cultivar. O vírus da febre amarela precisa ser cultivado numa célula viva. Claro, nós temos essas culturas e as usamos o tempo todo. Mas o problema aqui é a ordem de magnitude, que torna muito mais complicado e caro cultivar vírus do que produzir o Bacillus anthracis.
Outra coisa: o antraz é muito estável. E alguns vírus não. Olha, isso é uma indústria. Requer experimentação e tempo. Se você quer usar febre amarela, precisa estabilizá-lo e encontrar o material certo para espalhá-lo. Já se cultivou esporo de antraz de ossos que foram datados por carbono-14 em 200 anos! O antraz é maravilhosamente adaptado para operações terroristas. O problema é que ele não é tão infeccioso quanto as pessoas pensam. Mas os EUA e a ex-União Soviética usaram vírus em seus programas de guerra biológica, além do antraz.

Folha - O sr. esperaria um ataque com vírus?
Peters -
Bem, eu não esperava que dois aviões fossem bater no World Trade Center. Toda vez que tentar adivinhar o que um terrorista está pensando você vai se dar mal. Você pode pensar que o fato de eles terem feito antraz altamente purificado sugere um grau de sofisticação que é preocupante, e que houve muito trabalho e cuidado por trás disso.
Se eles têm um laboratório, não necessariamente no Afeganistão, onde fizeram isso, podem fazer mais. Eu me preocuparia mais com um ataque [com antraz" mediado por aerossóis, caso em que essas partículas de 1 a 5 microgramas seriam disseminadas no ar. Isso mataria um monte de gente. Muita gente ficaria exposta e isso seria disseminado sem ser visto.
Haveria um período de incubação, de uns cinco dias, e depois disso as pessoas ficariam doentes sem que ninguém soubesse o motivo. E depois que elas fossem identificadas haveria mais gente doente ainda, e todo esse estoque de antibióticos não seria mais tão útil. Outra coisa que eles poderiam fazer, e a longo prazo isso poderia acontecer, seria pôr resistência a antibiótico nas bactérias.

Folha - Então o sr. se preocupa mais neste momento com o próprio antraz do que com um vírus?
Peters -
Há sempre o curinga, que é a varíola. A varíola foi erradicada da natureza entre 1978 e 1979. E as pessoas que foram vacinadas na época não são mais imunes. A imunidade da vacina só dura de 10 a 20 anos. Quer dizer, "só" não; é uma bela imunização, mas ela vai embora. Então temos muita população suscetível, e ela se espalha de pessoa a pessoa. Quer dizer, o antraz é perturbador, mas não é sério de verdade. Antibióticos dão conta dele.
Se tivéssemos um ataque disseminado por aerossol, aí seria sério. Se tivéssemos uma centena de casos de varíola aqui, vocês teriam varíola no Brasil, porque nós não conseguiríamos contê-la. Pensávamos que a varíola estivesse confinada a um laboratório nos EUA e um na Rússia. Mas Ken Elibek [cientista do Cazaquistão que trabalhou no programa de armas biológicas da URSS" disse que eles têm toneladas de varíola transformada em arma.


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