São Paulo, quinta-feira, 21 de outubro de 2004

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RÚSSIA

Para a ONG dos EUA, ritual de iniciação militar causa mortes e suicídios

Human Rights denuncia sadismo no Exército russo

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Centenas de milhares de recrutas enfrentam maus-tratos em seu primeiro ano nas Forças Armadas russas, o que provoca um alto número de mortes e de suicídios, segundo relatório divulgado ontem pela Human Rights Watch.
O texto da organização sediada nos EUA, de 86 páginas, documenta inúmeros casos de violação aos direitos humanos durante a "dedovshchina" -ou regra dos avós-, espécie de ritual de iniciação militar da era soviética que ainda é aplicada atualmente, de acordo com a HRW.
Um total de 25 calouros morreram no primeiro semestre deste ano em decorrência dos abusos a ele impostos por outros soldados, enquanto 109 cometeram suicídio no mesmo período, um aumento de 38% em relação ao ano passado, segundo o relatório. Este cita estatísticas oficiais russas.
"O mais grave é que o "trote" dura todo o primeiro ano dos quatro que o recruta é obrigado legalmente a servir nas Forças Armadas. Trata-se de um fenômeno que se retroalimenta, pois, em seu segundo ano, os soldados querem alguma forma de vingança e acabam transferindo a violência para os novos recrutas", declarou à Folha, por telefone, de Moscou, Diederik Lohman, autor do relatório.
"Além da duração dos abusos, também devemos ressaltar sua intensidade e sua freqüência. Os novos soldados são alvo dos mais velhos sistematicamente, e as ações vão de espancamentos a queimaduras com cigarro. Ademais, os calouros vivem em estado de humilhação constante. O que há na Rússia não se compara com nenhum outro ritual de iniciação militar existente no planeta", acrescentou Lohman.
Na maioria dos casos, segundo a HRW, soldados estão por trás das violações impostas aos calouros. Para a entidade, contudo, os oficiais são tão culpados quanto seus comandados, já que preferem "ignorar abusos cometidos em suas unidades, embora o "trote" constitua uma ofensa ao código de conduta militar russo".
"Como disse anteriormente, o ciclo de violência é alimentado pelo desejo de vingança. O único modo de pôr fim a esse sistema requer que os oficiais graduados tomem uma posição claramente contrária à prática. Enquanto a maioria deles continuar a ignorar o tipo de violência a que são submetidos os recrutas, nada mudará realmente", afirmou Lohman.
"Mais alarmante é o fato de os oficiais, com freqüência, estimularem a aplicação do "trote" porque crêem que ele sirva para manter a disciplina em suas unidades. A mentalidade da cúpula militar deverá ser alterada se Moscou quiser resolver o problema."

Crise militar
De acordo com a HRW, o violento ritual de iniciação tem um grave impacto sobre a eficiência e a qualidade das Forças Armadas da Rússia, que conta com entre 150 mil e 200 mil recrutas anualmente, conforme suas necessidades. O serviço militar obrigatório russo é de quatro anos.
"A "dedovshchina" tem dois efeitos deletérios principais no que tange à atuação dos militares russos. Primeiro, o Exército passou a afugentar as pessoas mais bem preparadas. Quando têm boas relações com as autoridades, elas conseguem escapar. Senão, fazem tudo o que está a seu alcance para evitar o serviço militar", apontou Lohman.
"Com isso, a qualidade dos oficiais também se degradou, e o sistema acabou se perpetuando, visto que eles fazem vista grossa às violações cometidas por seus comandados. Segundo, recrutas fragilizados e humilhados publicamente por seus colegas são fisicamente menos aptos a enfrentar as dificuldades de situações de combate, como na Tchetchênia", acrescentou o pesquisador.
Ontem grupos de defesa dos direitos dos soldados disseram que cerca de 25 mil militares russos morreram na Tchetchênia na última década. As Forças Armadas da Rússia afirmam, porém, que por volta de 12 mil perderam a vida nos dez anos do conflito.
Após o colapso da URSS, no início da década passada, os militares russos perderam boa parte do respeito popular de que gozavam. Os soldos tiveram sensível redução, e os oficiais mais bem preparados trocaram as Forças Armadas pela iniciativa privada.


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