São Paulo, segunda-feira, 22 de março de 2004

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COMENTÁRIO

Fantasmas do aniversário da guerra

LUCIANA COELHO
DA REDAÇÃO

Um ano de ocupação no Iraque produziu um quadro muito mais heterogêneo do que o presidente George W. Bush e seus estrategistas incluíram em seus planos de guerra e com um saldo negativo em manchetes que o texano e seus falcões parecem não ter previsto.
Aliás, a Casa Branca parece ter se planejado para a situação inversa. Quem diria que "libertar" o Iraque do sanguinolento Saddam Hussein era a parte fácil da promessa, e difícil seria implantar a democracia entre os "libertos"?
Não há como, nem porque, argumentar que a derrocada de Saddam não seja um enorme bem para os iraquianos. Eles atestaram isso em pesquisa recente. Além disso, a ofensiva militar, que os EUA temiam se estender por meses em sangrentos combates com a temida guarda de elite de Saddam, acabou em fulminantes três semanas. O ditador desapareceu e nove meses mais tarde foi pego acuado em um buraco, episódio que produziu uma imagem triunfante com a qual Washington não deve ter sonhado nem em seus momentos mais otimistas.
E, ainda assim, a decisão de Bush está sendo amplamente questionada, o motivo para a invasão está em xeque e, pior, seu prognóstico para um Iraque democrático parece tão distante quanto tortuoso. Onde ele errou?
Errou em pelo menos dois aspectos. Primeiro, ao apostar que Bagdá, por não ter destruído o arsenal químico que possuía até 1991 na frente dos inspetores da ONU, só poderia estar escondendo as armas proibidas com o objetivo de atacar os EUA ou seus aliados. Não estava, como constatou uma equipe de mais de mil especialistas britânicos e americanos que passou meses no país, e como foi obrigado a admitir, ao menos como hipótese, um constrangido secretário Colin Powell.
Segundo, ao não prever que um país em que as divisões étnicas e religiosas são tão ríspidas, localizado em uma região formada essencialmente de autocracias e sem história de participação política popular seria um terreno árido demais para a democracia.
Passado um ano, nada, muito menos a conturbada presença americana, garante que o sistema criará raízes ali e renderá os frutos que Bush esperava na região.
Sem grande experiência, os líderes apontados pelos EUA se desdizem e têm dificuldades tremendas para chegar ao consenso em questões essenciais. Meses de discussão não produziram nem sequer um modelo de governo transitório aceito pela maioria -e é essa entidade, cujo formato é uma incógnita, que tomará posse em 30 de junho, quando os EUA devolvem a soberania ao país.
A esse quadro inóspito soma-se o fato de a guerra ter posto por terra uma economia já combalida por anos de corrupção e de sanções internacionais. Nem o petróleo, cuja segunda maior reserva do mundo está sob o solo iraquiano, ampara um prognóstico otimista. Ainda falta muito para restaurar a infra-estrutura do setor após bombardeios e incêndios.
Sem essa renda para custear a restauração, a investida americana pode se tornar muito mais cara do que Bush imaginara, e outro retorno ao Congresso para pedir mais verba para a operação (já se foram US$ 240 bilhões) pode incorrer no terceiro erro presidencial -este, aliás, muito mais notório para o eleitorado americano.
Para completar, as forças dos EUA parecem estar longe de resolver a questão prioritária para os iraquianos hoje: segurança. Acostumados com um baixo índice de criminalidade sob Saddam (que usava meios heterodoxos para combatê-la), os iraquianos penaram com a onda de crimes que se sucedeu à guerra e são acuados por ataques terroristas quase diários. O que era insurgência contra a ocupação virou ameaça para os civis iraquianos.
O mundo está livre de Saddam Hussein. Mas nem Bush nem o Iraque estão livres de fantasmas.


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