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Eleição discute quem é filho da República
Incorporação de imigrantes e outras classes excluídas à igualdade prometida pela França é tema vital na votação de hoje
Medo do desemprego e da perda da identidade guiou campanha; favoritismo de Sarkozy indica aceitação
do discurso antiimigração
CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A PARIS
A eleição presidencial de hoje na França é, no fundo, uma
discussão sobre o que a candidata socialista Ségolène Royal
chamou, logo no início da campanha, de "os filhos da República", acrescentando, com a generosidade clássica de todo
candidato, que os "filhos" têm
direito a trabalho, habitação e
segurança.
Bonito e fácil de falar, mas
muito difícil de pôr em prática.
Primeiro, é preciso definir com
clareza quais e quantos são os
"filhos da República". Depois,
"resta o penoso e delicado problema de saber, quando se é de
esquerda, se se pode acolher ou
não toda a miséria do mundo e
se a França está em condições
de transformar em filhos da
República todos aqueles que
acolhe", como escreveu Jean
Daniel, diretor da revista "Le
Nouvel Observateur", próxima
dos socialistas.
Dificuldade, aliás, que não
aparece apenas "quando se é de
esquerda", mas quando se é
presidente da República, de direita, centro ou esquerda. Afinal, direita e esquerda se revezaram no poder pelo menos no
último quarto de século, quando não o compartilharam, e o
resultado é contraditório.
"A economia francesa se porta razoavelmente bem, o nível
de vida aumenta, o desemprego
diminuiu bastante após uma
dezena de anos, e as empresas
francesas estão entre as mais
dinâmicas do mundo. Mas tudo
isso se dá em meio a uma desigualdade muito importante
que, em parte, é a tradução do
fracasso do modelo social do
qual somos tão orgulhosos", diz
Sylvie Matelly, economista do
Iris (Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas).
Matelly acrescenta que "certas classes sociais estão quase
excluídas do sistema". Cita os
jovens, os maiores de 50 anos,
os franceses procedentes da
imigração, os assalariados de
baixa qualificação.
"Escória"
Mas é a questão da imigração
que está inequivocamente no
centro da inquietação do jornalista Jean Daniel em saber "se a
França está em condições de
transformar em filhos da República todos aqueles que acolhe".
Os imigrantes e seus descendentes, que se concentram nos
"banlieues" (subúrbios) das
grandes cidades e puseram fogo
em meio país no final de 2005,
não se sentem "filhos da República". Depõe, por exemplo, Timothy Garton Ash, diretor do
Centro de Estudos Europeus
da universidade de Oxford, ao
"Le Monde", após entrevistar
jovens dos subúrbios:
"Eles me disseram que desejam simplesmente que a República esteja à altura de suas promessas, que ela os trate com
igualdade e lhes ofereça trabalho. Se lhes derem trabalho, então eles se sentirão franceses".
Nessa discussão sobre os "filhos da República", o primeiro
colocado em todas as pesquisas, o ex-ministro do Interior
Nicolas Sarkozy, parece ter tomado partido, delimitando os
campos, ao propor a criação de
um polêmico Ministério da
Identidade Nacional e da Imigração. Quando se recorda que
Sarkozy, ainda ministro, chamou de "racaille" (escória) os
jovens dos "banlieues" que incendiaram a França em 2005,
fica difícil imaginar que ele os
tratará como "filhos da República" se eleito presidente.
O fato de Sarkozy liderar as
pesquisas, embora com cerca
de um terço dos votos, mostra
que uma parcela importante
dos franceses compartilha suas
idéias. Ainda mais que o eterno
candidato da extrema direita,
Jean-Marie Le Pen, antiimigração, tem entre 12% e 15%.
Constata Anthony Messina,
do Escritório de Estudos Internacionais da Universidade de
Notre Dame (EUA): "Os franceses têm medo da globalização
e da erosão da segurança no
emprego. Temem que os "banlieues" explodam de novo e temem a efervescente força do Islã entre as minorias muçulmanas. Acima de tudo, muitas pessoas estão angustiadas com o
que vêem como o desaparecimento da França tradicional,
talvez para sempre".
Reforça Sally Marthaler, pesquisadora de Estudos Políticos
Europeus na Universidade britânica de Sussex: "É difícil separar os temas de imigração e
desemprego, e essa conexão está certamente presente na cabeça de muitos eleitores".
De fato está, e dos dois lados
dos "filhos da República". Se os
franceses de origem temem a
concorrência dos imigrantes,
estes sentem-se excluídos, como comprova, com números,
Azouz Begag, que foi companheiro de Sarkozy no ministério (era Ministro para a Igualdade Social), mas rompeu com
ele, após a qualificação de "racaille" para os jovens rebelados
de 2005: segundo Begag, o desemprego entre os franceses de
origem árabe atinge 50% (a média nacional é de 8,4%, segundo
o Ministério do Emprego).
Dá para entender porque Begag prevê que, se Sarkozy ganhar, "será a guerra anunciada". Significa que, se ganhar Ségolène Royal, principal rival de
Sarkozy, haverá paz e lugar para todos os filhos da República?
Não necessariamente. Ao sugerir que os franceses cantassem sempre a Marselhesa, o hino nacional, tocou em uma corda sensível para os imigrantes:
o hino foi vaiado durante uma
partida de futebol, tempos
atrás, e hoje há quem diga, como Ahmed Chukry, marroquino dos subúrbios, que jamais
cantará a Marselhesa, porque
"é o hino dos colonizadores".
Nesse cenário, difícil discordar de Anthony Messina quando afirma que a questão dos "filhos da República" veio para ficar: "Mesmo que a economia
francesa fosse robusta, o que
não está, os franceses ainda estariam muito ansiosos a respeito do modo como a sociedade
foi transformada pela imigração e, especialmente, pela imigração muçulmana".
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