São Paulo, domingo, 22 de abril de 2007

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Eleição discute quem é filho da República

Incorporação de imigrantes e outras classes excluídas à igualdade prometida pela França é tema vital na votação de hoje

Medo do desemprego e da perda da identidade guiou campanha; favoritismo de Sarkozy indica aceitação do discurso antiimigração

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A PARIS

A eleição presidencial de hoje na França é, no fundo, uma discussão sobre o que a candidata socialista Ségolène Royal chamou, logo no início da campanha, de "os filhos da República", acrescentando, com a generosidade clássica de todo candidato, que os "filhos" têm direito a trabalho, habitação e segurança.
Bonito e fácil de falar, mas muito difícil de pôr em prática. Primeiro, é preciso definir com clareza quais e quantos são os "filhos da República". Depois, "resta o penoso e delicado problema de saber, quando se é de esquerda, se se pode acolher ou não toda a miséria do mundo e se a França está em condições de transformar em filhos da República todos aqueles que acolhe", como escreveu Jean Daniel, diretor da revista "Le Nouvel Observateur", próxima dos socialistas.
Dificuldade, aliás, que não aparece apenas "quando se é de esquerda", mas quando se é presidente da República, de direita, centro ou esquerda. Afinal, direita e esquerda se revezaram no poder pelo menos no último quarto de século, quando não o compartilharam, e o resultado é contraditório.
"A economia francesa se porta razoavelmente bem, o nível de vida aumenta, o desemprego diminuiu bastante após uma dezena de anos, e as empresas francesas estão entre as mais dinâmicas do mundo. Mas tudo isso se dá em meio a uma desigualdade muito importante que, em parte, é a tradução do fracasso do modelo social do qual somos tão orgulhosos", diz Sylvie Matelly, economista do Iris (Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas).
Matelly acrescenta que "certas classes sociais estão quase excluídas do sistema". Cita os jovens, os maiores de 50 anos, os franceses procedentes da imigração, os assalariados de baixa qualificação.

"Escória"
Mas é a questão da imigração que está inequivocamente no centro da inquietação do jornalista Jean Daniel em saber "se a França está em condições de transformar em filhos da República todos aqueles que acolhe".
Os imigrantes e seus descendentes, que se concentram nos "banlieues" (subúrbios) das grandes cidades e puseram fogo em meio país no final de 2005, não se sentem "filhos da República". Depõe, por exemplo, Timothy Garton Ash, diretor do Centro de Estudos Europeus da universidade de Oxford, ao "Le Monde", após entrevistar jovens dos subúrbios:
"Eles me disseram que desejam simplesmente que a República esteja à altura de suas promessas, que ela os trate com igualdade e lhes ofereça trabalho. Se lhes derem trabalho, então eles se sentirão franceses".
Nessa discussão sobre os "filhos da República", o primeiro colocado em todas as pesquisas, o ex-ministro do Interior Nicolas Sarkozy, parece ter tomado partido, delimitando os campos, ao propor a criação de um polêmico Ministério da Identidade Nacional e da Imigração. Quando se recorda que Sarkozy, ainda ministro, chamou de "racaille" (escória) os jovens dos "banlieues" que incendiaram a França em 2005, fica difícil imaginar que ele os tratará como "filhos da República" se eleito presidente.
O fato de Sarkozy liderar as pesquisas, embora com cerca de um terço dos votos, mostra que uma parcela importante dos franceses compartilha suas idéias. Ainda mais que o eterno candidato da extrema direita, Jean-Marie Le Pen, antiimigração, tem entre 12% e 15%.
Constata Anthony Messina, do Escritório de Estudos Internacionais da Universidade de Notre Dame (EUA): "Os franceses têm medo da globalização e da erosão da segurança no emprego. Temem que os "banlieues" explodam de novo e temem a efervescente força do Islã entre as minorias muçulmanas. Acima de tudo, muitas pessoas estão angustiadas com o que vêem como o desaparecimento da França tradicional, talvez para sempre".
Reforça Sally Marthaler, pesquisadora de Estudos Políticos Europeus na Universidade britânica de Sussex: "É difícil separar os temas de imigração e desemprego, e essa conexão está certamente presente na cabeça de muitos eleitores".
De fato está, e dos dois lados dos "filhos da República". Se os franceses de origem temem a concorrência dos imigrantes, estes sentem-se excluídos, como comprova, com números, Azouz Begag, que foi companheiro de Sarkozy no ministério (era Ministro para a Igualdade Social), mas rompeu com ele, após a qualificação de "racaille" para os jovens rebelados de 2005: segundo Begag, o desemprego entre os franceses de origem árabe atinge 50% (a média nacional é de 8,4%, segundo o Ministério do Emprego).
Dá para entender porque Begag prevê que, se Sarkozy ganhar, "será a guerra anunciada". Significa que, se ganhar Ségolène Royal, principal rival de Sarkozy, haverá paz e lugar para todos os filhos da República?
Não necessariamente. Ao sugerir que os franceses cantassem sempre a Marselhesa, o hino nacional, tocou em uma corda sensível para os imigrantes: o hino foi vaiado durante uma partida de futebol, tempos atrás, e hoje há quem diga, como Ahmed Chukry, marroquino dos subúrbios, que jamais cantará a Marselhesa, porque "é o hino dos colonizadores".
Nesse cenário, difícil discordar de Anthony Messina quando afirma que a questão dos "filhos da República" veio para ficar: "Mesmo que a economia francesa fosse robusta, o que não está, os franceses ainda estariam muito ansiosos a respeito do modo como a sociedade foi transformada pela imigração e, especialmente, pela imigração muçulmana".


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