|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
POLÍTICA EXTERNA/OPINIÃO
Vira-lata is beautiful
ALEXANDRE VIDAL PORTO
ESPECIAL PARA A FOLHA
NA PRIMEIRA vez que
enfrentou a Inglaterra, em 1958, a seleção
brasileira perdeu de 2 a 0. Para
Nelson Rodrigues, a derrota se
devia ao que chamava de "complexo de vira-lata". Frente aos
ingleses, "louros e sardentos", o
time sentiu-se diminuído.
Diante da Inglaterra, o Brasil
ganiu de humildade. É o que
conta o cronista.
A referência canina forçava a
noção de que a inferioridade
decorria de suas características
raciais. Nossos jogadores não
tinham pedigree. O brasileiro
era de muitas raças. E sentia-se
inferior por isso.
Acontece que, quando Nelson Rodrigues definiu pela primeira vez o tal complexo, o
mundo era outro. A importância do Brasil no mundo, também. A ONU tinha 60 Estados-membros. A subordinação do
"mestiço" ao "puro sangue", supostamente superior, traduzia-se na realidade. O negro valia
menos que o branco. O colonizador era melhor que o colonizado. Os "vira-latas" estavam
por baixo. A natureza do brasileiro devia, portanto, despertar
complexo, não orgulho. Valorizávamos o que nunca seríamos.
Colocávamo-nos em situação
de eterna inferioridade. Mas as
coisas evoluem.
Entre os 192 membros que
hoje tem a ONU, o Brasil é a nona maior economia. É um dos
maiores produtores de alimentos. Conta com indústria diversificada. Não apresenta problema de endividamento externo.
Tornou-se credor líquido de recursos. Tem autossuficiência
energética. É o sexto maior fabricante de automóveis e vende
aviões mundo afora.
O Brasil não nega sua condição de país em desenvolvimento. Tampouco ignora os desafios importantes na esfera social que deve enfrentar e vencer. Os brasileiros sabem que
seu país é uma obra em construção e que, como povo, têm a
aprender sobre a própria diversidade. No entanto, no contexto internacional, por qualquer
ângulo que se olhe, o Brasil se
singulariza.
O mundo admira o Brasil. Os
brasileiros, relutantemente,
dão-se conta disso. Percebem
que a lógica de superioridade
não se sustenta. Redescobrem
a autoestima. Firma-se entre
eles a consciência de que a diversidade lhes abre possibilidades mais amplas do que os estereótipos inferiorizantes da
ideologia colonialista permitiriam antever.
Em seu caminho rumo ao
progresso, a civilização mestiça
do Brasil precisa enxergar além
do espelho dos países hiperdesenvolvidos. A missão do Brasil
deve ser recíproca e solidária,
na qual aprende e ensina, civiliza e é civilizado. Gabriel Buchmann, estudante que morreu
no Maláui depois de viajar por
60 países realizando estudos
comparativos do combate à pobreza, colocou isso em prática.
Diante da emergência dos
"vira-latas", a reprodução irresponsável de padrões que inferiorizam a maioria esmagadora da humanidade virou clichê arcaico. Ser diferente e ser
igualmente bom é o exemplo
que o Brasil pode dar.
Se Nelson Rodrigues soubesse que, meses depois de sua
crônica, os "vira-latas" brasileiros apresentariam ao mundo
Garrincha e Pelé e conquistariam na Suécia a Copa do Mundo pela primeira vez, talvez tivesse repensado seus conceitos. Afinal, nunca houve razão
para complexo. Era tudo mentira. Vira-lata is beautiful.
O autor é diplomata de carreira, mestre em direito pela Universidade Harvard e autor do romance "Matias na cidade" (Editora Record)
Texto Anterior: Papa promete "ação" contra casos de abuso Próximo Texto: Gafes abalam imagem Índice
|