São Paulo, quinta-feira, 22 de abril de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

POLÍTICA EXTERNA/OPINIÃO

Vira-lata is beautiful

ALEXANDRE VIDAL PORTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

NA PRIMEIRA vez que enfrentou a Inglaterra, em 1958, a seleção brasileira perdeu de 2 a 0. Para Nelson Rodrigues, a derrota se devia ao que chamava de "complexo de vira-lata". Frente aos ingleses, "louros e sardentos", o time sentiu-se diminuído. Diante da Inglaterra, o Brasil ganiu de humildade. É o que conta o cronista.
A referência canina forçava a noção de que a inferioridade decorria de suas características raciais. Nossos jogadores não tinham pedigree. O brasileiro era de muitas raças. E sentia-se inferior por isso.
Acontece que, quando Nelson Rodrigues definiu pela primeira vez o tal complexo, o mundo era outro. A importância do Brasil no mundo, também. A ONU tinha 60 Estados-membros. A subordinação do "mestiço" ao "puro sangue", supostamente superior, traduzia-se na realidade. O negro valia menos que o branco. O colonizador era melhor que o colonizado. Os "vira-latas" estavam por baixo. A natureza do brasileiro devia, portanto, despertar complexo, não orgulho. Valorizávamos o que nunca seríamos. Colocávamo-nos em situação de eterna inferioridade. Mas as coisas evoluem.
Entre os 192 membros que hoje tem a ONU, o Brasil é a nona maior economia. É um dos maiores produtores de alimentos. Conta com indústria diversificada. Não apresenta problema de endividamento externo. Tornou-se credor líquido de recursos. Tem autossuficiência energética. É o sexto maior fabricante de automóveis e vende aviões mundo afora.
O Brasil não nega sua condição de país em desenvolvimento. Tampouco ignora os desafios importantes na esfera social que deve enfrentar e vencer. Os brasileiros sabem que seu país é uma obra em construção e que, como povo, têm a aprender sobre a própria diversidade. No entanto, no contexto internacional, por qualquer ângulo que se olhe, o Brasil se singulariza.
O mundo admira o Brasil. Os brasileiros, relutantemente, dão-se conta disso. Percebem que a lógica de superioridade não se sustenta. Redescobrem a autoestima. Firma-se entre eles a consciência de que a diversidade lhes abre possibilidades mais amplas do que os estereótipos inferiorizantes da ideologia colonialista permitiriam antever.
Em seu caminho rumo ao progresso, a civilização mestiça do Brasil precisa enxergar além do espelho dos países hiperdesenvolvidos. A missão do Brasil deve ser recíproca e solidária, na qual aprende e ensina, civiliza e é civilizado. Gabriel Buchmann, estudante que morreu no Maláui depois de viajar por 60 países realizando estudos comparativos do combate à pobreza, colocou isso em prática.
Diante da emergência dos "vira-latas", a reprodução irresponsável de padrões que inferiorizam a maioria esmagadora da humanidade virou clichê arcaico. Ser diferente e ser igualmente bom é o exemplo que o Brasil pode dar.
Se Nelson Rodrigues soubesse que, meses depois de sua crônica, os "vira-latas" brasileiros apresentariam ao mundo Garrincha e Pelé e conquistariam na Suécia a Copa do Mundo pela primeira vez, talvez tivesse repensado seus conceitos. Afinal, nunca houve razão para complexo. Era tudo mentira. Vira-lata is beautiful.

O autor é diplomata de carreira, mestre em direito pela Universidade Harvard e autor do romance "Matias na cidade" (Editora Record)



Texto Anterior: Papa promete "ação" contra casos de abuso
Próximo Texto: Gafes abalam imagem
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.