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São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

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DIÁRIO DE BAGDÁ

'Apocalypse Now'

Juca Varella/Folha Imagem
O garoto Ahmed Ali, de 5 anos, em hospital localizado no centro de Bagdá que recebeu feridos da série de bombardeios na cidade



Figura de Saddam lembra o "Grande Irmão" de Orwell

Novelas brasileiras fazem sucesso na TV iraquiana



Por SÉRGIO DÁVILA, ENVIADO ESPECIAL A BAGDÁ

"Apocalypse Now". Mais precisamente a cena em que o militar interpretado por Robert Duvall manda banhar de napalm as palmeiras que separam a areia da praia do continente, no Vietnã. Foi essa a primeira cena que veio à cabeça do repórter no bombardeio de sexta-feira última à noite, ao longo da margem do Tigre. O problema é que era de verdade, e era logo ali ao lado.
 
E as mais de 200 vítimas civis atestam que não existe o que se chama de guerra cirúrgica.
 
Passeando pela cidade, é difícil separar o que foi derrubado pelos mísseis norte-americanos e o que já era ruína, tamanha a falta de dinheiro para manutenção -como em Cuba, aliás. Não se encaixa em nenhuma das duas categorias o que deveria ser a maior mesquita do mundo árabe, um projeto de estimação de Saddam. Está parada há meses, mas o seu esqueleto de concreto já lembra o de alguns palácios do líder iraquiano atingidos.
 
Falando em Saddam, todo o seu ministério é formado por generais e se apresenta à imprensa de boina preta e farda verde-oliva. No bolso da manga do braço esquerdo, invariavelmente, duas canetas. Os mais vaidosos, como o ministro da Eletricidade, mandam folhar a pistola a ouro.
 
O presidente iraquiano é onipresente. Todas as paredes internas de todos os espaços públicos trazem um retrato dele. Nas TVs e rádios, ele domina 90% da programação. Nas ruas, ele confirma em concreto e metal o "Grande Irmão" imaginado por Orwell a cada praça, cada esquina, cada outdoor (só há outdoors para Saddam Hussein; nenhum outro produto é anunciado).
 
Em todo o lugar a que chega a imprensa internacional, logo um grupo de cinco a dez funcionários aparece e faz uma manifestação "voluntária" a favor de Saddam Hussein. Os slogans são pobres: "Saddam é nosso pai", "Bush, Bush, down, down". E o melhor deles: "Nós apoiamos o presidente Saddam Hussein".
 
Os ocidentais, aliás, pronunciamos erroneamente o sobrenome do presidente: é "rusíen", e não "russêin".
 
Ninguém fala, porém, da mulher dele. Ninguém fala, aliás, de mulher nenhuma.
 
Não há mulher nas ruas de Bagdá.
 
Também não há chiclete nas ruas de Bagdá.
 
Mesmo assim, Bagdá não perde o bom humor e o calor humano. Brasileiros, por exemplo, que não são identificados com o invasor nem com ameaça nenhuma, são muito bem tratados.
 
Mas há muito café. Não o que toma o brasileiro. É mais um chá. Diz-se "kahua". O chá em si é "chai". (Ou "tchai", se você é do Egito ou é iraquiano e quer se meter a besta).
 
Os mais ricos, não necessariamente mais metidos, moram nos bairros de Al Mansur e El Kharadi, ambos à beira do rio (que fede). Lá, as mansões saem por até US$ 20 mil -contra US$ 3 mil de uma casa de classe média.
 
Aliás, os iraquianos pronunciam Bagdad. E trocam o pê pelo bê sempre que aprendem uma nova palavra ocidental. Por exemplo: "punda".
 
Os homens se dão três beijos no rosto quando se encontram, quatro se são muito amigos. Soldados do mesmo batalhão andam de mãos dadas se saem em dupla.
 
Fuma-se como se não houvesse amanhã -e talvez não haja mesmo. É o único dos vícios permitido pelo Islã, e os iraquianos fazem valer cada segundo dele. A maioria dos carros, no entanto, tem os cinzeiros limpos. Reparando bem, percebe-se um copo de água fixado em algum lugar do painel. Dentro dele, bóiam felizes as bitucas e as cinzas.
 
Antes, durante e depois de fumar, come-se. Assim mesmo, ao contrário. A mesa iraquiana é simples, mais pelo embargo econômico do que por gosto. Quando tem, tem os tradicionais kebab de carneiro e de frango, além de húmus (pasta de grão-de-bico) e arroz com aletria. Mas quibe é kubbeh (pronuncia-se "cúbe") e esfiha não há. Parece que a iguaria só é chamada assim na Síria.
 
Já o objeto de consumo é a ovelha. Que faz mesmo um improvável "mé", como se fosse de história em quadrinhos. Todos querem ter uma ovelha, seja para fazer queijo, seja para fazer banquete, seja para usar a pele como tapete. Rico é quem tem mais ovelhas. Chega ao ponto de uma das lanchonetes mais populares da cidade mostrar em seu outdoor um menininho brincando com uma delas. Detalhe: o bichinho vai ser a matéria-prima do principal sanduíche da casa.
 
Depois da mesa, o banho. Bagdá -e, até onde pude ver, o Iraque- tem seus banheiros entre os dez piores do mundo. São buracos no chão, seja para homens, seja para mulheres, com uma singela bacia cheia d'água ao lado. A exceção são os hotéis. Mesmo assim, vão mal os hotéis de Bagdá.
 
A começar pelo telefone, que é da década de 70. E a TV, muitas vezes P&B e, quando colorida, de um modelo soviético dos anos 80. Cabo é ilusão de ótica, assim como controle remoto.
 
A pirataria reina, já que desde o embargo o Iraque não vem primando exatamente por respeitar direitos intelectuais. Assim, é possível fumar o cigarro Mikado, com o eme, o desenho e a cor idênticos aos do Marlboro. Ou admirar a atriz Natalie Portman (a princesa Amidala de "Star Wars") anunciando uma lanchonete de comida para viagem.
 
Ninguém aqui sabe do que se trata aquela menina. O dono da loja viu a foto bonita numa revista ocidental e pediu ao amigo para colocá-la no letreiro. A Hollywood de Bagdá, a terra dos sonhos impossíveis, é o Egito.
 
É de lá que vêm os grandes filmes, os "astros" e "estrelas" e os cantores consumidos na cidade. Como, por exemplo, Hanan Turk, que está filmando "Hub El Banat" (Romance de Garotas). Ela explodiu em "Raghba Motawahesh" (Um Desejo Selvagem), muito famoso. Já sua concorrente Muna Zaki anuncia a filmagem de "Hub Ala Al Internet" (Amor sobre a Internet).
 
Está tudo no "Iraq Daily", publicado pelo Ministério da Informação (toda a imprensa é estatal, assim como a TV, as rádios etc.).
 
É lá que se anuncia que o Iraque está produzindo seu centésimo filme. Sim, o berço da civilização, a terra que inventou a escrita e o código civil há milênios produziu um total de 99 longas metragens até hoje. O de número 100 vai se chamar "Noite Chuvosa" e será dirigido por Hashim Abu Iraq. Trata da guerra do país contra o vizinho Irã, nos anos 80.
 
O Brasil também dá sua contribuição às artes locais, sendo responsável por dois dos maiores sucessos televisivos do Iraque: as telenovelas "Maria Helena" e "Regina". Também não consegui descobrir quais são (ambas já saíram do ar), mas entendi que a primeira tirava seu nome do personagem principal e a segunda, da atriz (Regina Duarte, claro).


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