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São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

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ASSUNTOS INTERNOS

Alemanha teme imposições dos EUA na Europa; China age por questões de Estado

Interesses definem oposição à guerra


França e Rússia nunca disseram que temem pelas perdas num Iraque depois de Saddam, pelo petróleo que deixariam de comprar e pelos US$ 15 bi devidos pelos iraquianos


JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

O primeiro-ministro espanhol, José Maria Aznar, afirmou a um grupo de deputados, em 31 de janeiro, ter informações seguras de que o regime de Saddam representava ameaça real para a segurança da Espanha. Aznar referia-se à prisão, em Barcelona, uma semana antes, de 16 argelinos e marroquinos "que trabalham com armamento químico".
Mas eis que, pouco tempo depois, o jornal "El País" revelava que as supostas armas químicas eram em verdade detergentes e produtos de limpeza.
Em Londres, a 7 de fevereiro, o governo desculpou-se por ter divulgado como "indício" do envolvimento do Iraque com o terrorismo islâmico um documento que não passava de redação escolar, feita há dez anos por um norte-americano. O engano veio a público em relatório da Media Lens, entidade que verifica a qualidade das informações da imprensa.
Os dois episódios demonstram a dificuldade dos aliados incondicionais do presidente George W. Bush em traduzir a ampla antipatia despertada pelo ditador iraquiano em apoio a uma guerra destinada a derrubá-lo.
Dificuldades também existiram entre os que se opõem aos EUA. Nesse jogo de dissimulações, França e Rússia nunca disseram, de forma aberta, que temem pelo espaço econômico que perderiam num Iraque pós-Saddam, pelo petróleo que deixariam de comprar e pelos US$ 15 bilhões que os iraquianos ainda lhes devem.
De maneira mais aberta, China, Alemanha, Rússia e França afirmaram que recorrer às armas sem um mandado explícito do Conselho de Segurança da ONU abriria um precedente delicado nas relações internacionais.
Os quatro países, com serviços de inteligência competentes, acreditam inexistir provas de que Saddam atue em parceria com a Al Qaeda de Bin Laden. Também defenderam o prolongamento da missão dos inspetores da ONU, únicos credenciados a dizer se o Iraque ainda mantém arsenais de destruição em massa.
Detalhe: esses quatro países apoiaram de forma aberta o esforço norte-americano de derrubar, em 2001, o regime pró-terrorista do Afeganistão, ou participaram diretamente dele.
Agora, no entanto, acreditam que os EUA estejam impondo a vontade do mais forte. As formas de convivência derivariam unicamente do pensamento estratégico da única superpotência.
A França não quer apenas o multilateralismo. Quer também um mundo multipolar, em que a presença norte-americana seja equilibrada por outras culturas e pólos econômicos. A Rússia de Putin deseja reconquistar o espaço perdido com o colapso da União Soviética. Sua nova classe de empresários acredita que só assim o país deixaria para trás a crise em que mergulhou em 1998.
A Alemanha, desconfiada por motivos históricos do belicismo, teme que o descrédito do multilateralismo permita que os Estados Unidos alimentem divisões e com isso imponham seus interesses na Europa. Há ainda os efeitos nefastos de uma guerra em sua própria economia.
A China é um caso à parte. Sem interesses internos expressos por uma sociedade organizada, seu comportamento só está baseado nos interesses de Estado. Quer o petróleo do Iraque e também quer que os EUA nunca apóiem o separatismo de Taiwan ou denunciem a brutalidade do combate a seus dissidentes e criminosos.
China e Rússia cooperaram com os EUA nas tarefas de inteligência que precederam a guerra no Afeganistão. Os russos obtiveram, em troca, os olhos fechados de Bush para aquilo que entidades de direitos humanos denunciam como um genocídio na Tchetchênia.
Nos países com liberdade de expressão, as manifestações pacifistas deram legitimidade a adversários da guerra (Alemanha, França) e criaram dificuldades para aliados de Bush (Espanha e Reino Unido).
O caso espanhol é curioso. Uma das análises correntes em Madri é a de que o primeiro-ministro Aznar contava com uma guerra breve e pouco sangrenta ainda em fevereiro. Com o arrastar da questão na ONU, ele não teve como recuar. E ainda entregou indiretamente um trunfo nas mãos da oposição do PSOE, cujo líder, José Luis Sapatero, opõe-se a Bush.
No Reino Unido, Tony Blair perde espaço na política e na opinião pública. Há algumas formas para tentar entender.
A primeira, baseada na aliança histórica com os EUA, refere-se à necessidade de Londres matizar as idéias simples utilizadas por Bush. Ou ainda sinalizar que os Estados Unidos, inseguros em razão do terrorismo, não estão hoje em dia isolados.
Mas há uma causa mais trivial. Segundo o "The Guardian", o Reino Unido caminha para uma crise de suprimento energético. Os poços do mar do Norte secarão rápido, e a União Européia limitou os subsídios ao programa nuclear.
Restaria então o petróleo do Iraque, que um futuro regime pró-EUA não teria dificuldades em dividir com os britânicos.


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