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São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

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RAIO X DO REGIME

Ditador fez da violência um instrumento essencial para reter o poder por 24 anos

Terror interno sustenta Saddam


Dos anos de militância clandestina, Saddam extraiu a conclusão de que não deveria permitir a menor dissidência em um país heterogêneo e instável como o Iraque


IGNACIO CEMBRERO
DO "EL PAÍS"

Saddam Hussein era valente. Em 1959, em plena efervescência do nacionalismo árabe, participou, com apenas 22 anos, da tentativa frustrada de assassinato do então primeiro-ministro iraquiano, o general Abdelkarim Kassem. Terminou ferido com um tiro na perna na rua Rachid, em pleno centro de Bagdá. Sua biografia, distribuída pelas embaixadas iraquianas, assegura que o jovem revolucionário extraiu a bala sem ajuda, diante do olhar atônito de seus companheiros, com uma faca de cozinha.
Para os jornalistas que conheceram o palácio presidencial de sua capital, em fevereiro de 1980, numa visita cercada de guarda-costas e após terem passado por múltiplos controles de segurança, e para alguém que continue a vê-lo na televisão, presidindo o Conselho de Comando da Revolução, sempre flanqueado por gorilas atentos, Saddam parece um homem temeroso.
Passar de intrépido revolucionário a chefe de Estado um tanto covarde é apenas uma faceta em sua evolução. Há outras mais chamativas, como a renúncia paulatina de uma ideologia, o baathismo, mescla de nacionalismo árabe com algumas idéias socializantes, em troca um regime sustentado em sua tribo.
O nacionalismo lhe foi inculcado por Subna, sua mãe. Ela contava a ele desde pequeno, segundo a biografia oficial do líder, "histórias sobre a resistência de sua família à colonização otomana, de pessoas próximas que caíram mártires por conta de seus posicionamentos em favor da libertação nacional".
Seu pai, um modesto camponês, morrera pouco antes do nascimento de seu filho, em 28 de abril de 1937, em al-Awja, uma aldeia próxima de Tikrit, 170 quilômetros ao norte de Bagdá, segundo a biografia oficial. Alguns exilados iraquianos alegam, no entanto, que o pai de Saddam foi assassinado pelo amante de sua mãe, enquanto outros garantem que ele abandonou a mulher grávida. Subna casou-se de novo, com um homem chamado Ibrahim.
O pequeno Saddam aparentemente não se dava muito bem com ele. Com apenas dez anos de idade, Subna decidiu enviar o filho a Bagdá, para a casa do tio Khairalla Tulfa, professor de ensino médio envolvido na luta contra o colonialismo. Foi lá que ele recebeu sua segunda dose de nacionalismo.
A terceira injeção de fé nacionalista de Saddam foi recebida quando ele se afiliou ao partido Baath, aos 18 anos. No mesmo ano, foi reprovado no concurso para a Academia Militar. Restou-lhe estudar direito.
A verdadeira escola do jovem seria, ainda assim, a rua, ou as garagens obscuras em que se reuniam os militantes de seu partido, que alternava períodos de clandestinidade e de existência legal. Em meio à ebulição nacionalista do final dos anos 50, Saddam cometeu seu primeiro assassinato. Matou em sua cidade de origem, Tikrit, um colaborador do general Kassem. Passou um tempo atrás das grades, até ser absolvido.
No ano seguinte, 1959, tentou assassinar o próprio general Kassem. Não deu certo, e Saddam fugiu, ferido na perna e no pé, até a Síria. De lá, viajou ao Cairo, onde se matriculou de novo como aluno de direito, enquanto um tribunal de Bagdá o condenava à morte. Sua estada na capital egípcia durou pouco mais de três anos, até que, em 1963, os militantes do Baath e outros companheiros de viagem conseguiram enfim derrubar o governo de Kassem. Saddam pôde então voltar a Bagdá.
Michel Aflak, um cristão que funcionava como ideólogo do Baath, propôs que Saddam fosse incorporado à direção do partido. O primeiro posto oficial que lhe foi conferido foi o de investigador em um antigo palácio real de Bagdá, conhecido popularmente como "palácio do fim", porque era ali que morriam sob tortura os seguidores de Kassem.
"Ao interrogar os prisioneiros, ele recorria à tortura e participou da eliminação física de pessoas", disse o palestino Said Aburish, autor de um livro sobre Saddam chamado "A Política da Vingança". Em 1963, Saddam se casou com a prima Sajida, com quem teve cinco filhos, dois homens e três mulheres.
No ano seguinte, um novo golpe de Estado fez com que o Baath voltasse à ilegalidade, e Saddam se converteu de verdugo em vítima. Permaneceu preso por dois anos até que, com uma lixa escondida em um pacote entregue a ele por familiares, conseguiu cortar as barras de sua cela. Tendo se tornado o segundo homem no comando de seu partido, ele se manteve foragido e trabalhou na clandestinidade até o golpe de Estado de julho de 1968, protagonizado por um grupo de militares baathistas dirigido pelo tio de Saddam, Ahmed Hassan al Bakr.
Começaria então uma ascensão ininterrupta que o levaria a adquirir o poder absoluto depois de tomá-lo ao tio, Al Bakr, que se tornara presidente. O processo começou em 1969, quando Saddam se tornou vice-secretário-geral-adjunto do Conselho de Comando da Revolução, o verdadeiro centro de decisões do país. Depois ele foi encarregado de colocar em prática a mais importante iniciativa econômica da história do Iraque, a nacionalização das empresas petroleiras do país, em 1972.
Em 1973, o tio forçou sua designação para a Vice-Presidência do Iraque. Em 1974, tornou-se comandante-em-chefe do Exército. Sua força derivava dos métodos brutais do Departamento de Relações Gerais, o eufemismo usado para designar a polícia secreta, que ele supervisionava pessoalmente. Dos anos de militância clandestina, Saddam havia extraído a conclusão de que não se deveria permitir a menor dissidência, em um país tão heterogêneo e instável como o Iraque.
Para dissuadir os opositores de agir, o líder iraquiano não se limitava a aniquilar os adversários: as famílias deles também eram condenadas. Nos momentos mais tenebrosos havia, em determinadas cidades, "casas malditas", porque os membros da família de um dissidente tinham desaparecido. As casas estavam vazias.
"Trata-se de um regime totalitário que se apóia no e sobrevive graças ao terrorismo interno", dizia Frank Anderson, chefe da divisão da CIA encarregada do Oriente Médio nos anos 90.
O último degrau da ascensão ao poder foi galgado em 1979. Seu tio, Al Bakr, abandonou a chefia do partido e do Estado em 16 de julho "por motivos pessoais", e o sobrinho o substituiu em todos os cargos oficiais. Nesse meio tempo, uma camarilha de oficiais do Exército e de líderes do partido Baath caía vítima de uma série de execuções extrajudiciais.
Aos 42 anos, ele havia chegado ao comando do Estado. E seu projeto ao chegar à cúpula era modernizar o Iraque e convertê-lo em líder entre os países árabes. Os proventos do petróleo contribuíam havia anos para o desenvolvimento acelerado do país -a classe média equivalia a 50% da população- e para que seus arsenais fossem mantidos em dia, com ajuda da França e da União Soviética. Estimulado por ocidentais e árabes a quem havia comunicado suas intenções belicistas, Saddam desencadeou em 1980 uma invasão ao Irã do aiatolá Khomeini.
Era uma época em que até mesmo suas relações com os Estados Unidos eram cordiais. "Vocês, norte-americanos", brincou Saddam Hussein em reunião secreta com funcionários de primeiro escalão do Departamento de Estado em 1985, "tratam o Terceiro Mundo como os camponeses iraquianos tratam suas novas mulheres: três dias de lua-de-mel, e depois de volta para a roça".
O conflito com o Irã foi seu primeiro grande erro. A guerra que deveria ser um passeio militar se transformou rapidamente em um desgastante conflito de trincheiras. O ditador não hesitou em usar armas químicas, pela primeira vez. Ainda assim, a guerra terminou em uma espécie de empate, em 1988.
Mas, sem se deixar desanimar, Saddam decidiu iniciar uma nova invasão, escolhendo em 1990 um adversário de menor porte, o Kuait. Além do desejo de ampliar seu controle sobre recursos petroleiros, o homem de Tikrit estava tentando de novo tomar à força a liderança regional. Encabeçada por Bush pai, opôs-se a ele a maior coalizão internacional de todos os tempos. E dessa vez a derrota foi acachapante.
Em um país devastado, com a infra-estrutura destruída pelos bombardeios, um Exército em debandada, curdos e xiitas decidiram se rebelar. Pela primeira vez, o regime de Saddam cambaleou. Mas o terror uma vez mais restabeleceria a ordem. Saddam se tornou, depois de Adolf Hitler nos campos de concentração, a primeira pessoa a empregar armas químicas (gás mostarda) contra civis.
No país que um dia foi o menos abertamente religioso do mundo árabe, em companhia da Tunísia, as invocações islâmicas se tornaram cada vez mais frequentes. Até Saddam mesmo, que desde jovem não ia a uma mesquita, declarou com solenidade à rede de notícias CNN em 1991 que "aqueles que têm Deus a seu lado não serão derrotados".
À medida que os revezes foram se acumulando, o baathismo foi se convertendo, no Iraque, em um simples verniz ideológico, e o partido deixou de ser a coluna vertebral do regime, substituído pelo clã de Tikrit, composto por familiares e aliados do ditador. É esse agora o verdadeiro núcleo do poder no Iraque.
"Em dado momento, transferiu o poder do partido Baath à sua família, porque decidiu que só pode confiar nela", alega Aburish. "As relações familiares e tribais são agora as mais importantes."
Ainda que às vezes discordem em alguns detalhes, os serviços de inteligência ocidentais crêem que os três meio-irmãos do ditador por parte de mãe controlem os mujabarats (polícia política), enquanto o outro ramo de sua família, os Hussein al Majid, ostentam responsabilidades no Exército e no partido Baath.
Por sobre todos eles, Uday Hussein, 39, o primogênito de Saddam, é o braço direito do pai. Encarregado da propaganda, cuida também da milícia. Seu irmão mais novo, Qusai, 36, comanda a Guarda Republicana, o corpo de elite do Exército iraquiano, núcleo duro do regime.
"O aniversário do líder é o renascimento de uma nação em marcha para a vitória." É provável que no próximo dia 28 de abril, aniversário de Saddam, o diário "Al Goumhoria", de Bagdá, não possa repetir a manchete que ocupa sua primeira página todos os anos. Porque, a essa altura, o ditador iraquiano poderá ter sido derrotado.
É provável também que, quando o ditador mais persistente do Oriente Médio perder o poder, e talvez a vida, tampouco adentre o panteão de líderes históricos do Terceiro Mundo ao qual imaginava ascender em companhia de Nasser, Mao Tsé-tung, Ho Chi Minh, Tito. Todos, em alguma medida, usaram a força para chegar ao topo e lá permanecer.
Mas, diferentemente deles, a história recordará que Saddam Hussein fez do terror seu principal, quase exclusivo, instrumento de governo.


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