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"Brasil não sabia dos meus planos", diz Zelaya
Decisão de buscar embaixada deveu-se à vocação democrática e ao peso internacional do país, afirma hondurenho à Folha
Único diplomata brasileiro remanescente em Honduras relata caos na embaixada com superlotação e cerco promovido por golpistas
ELIANE CANTANHÊDE
COLUNISTA DA FOLHA
O presidente deposto de
Honduras, Manuel Zelaya, disse ontem que não combinou
sua volta ao país e sua ida para a
Embaixada do Brasil previamente com o Planalto e o Itamaraty por temer que a operação fosse descoberta pelo governo golpista e abortada.
"O Brasil não sabia dos meus
planos. Tomei a decisão de vir
direto à embaixada por uma
questão de estratégia, uma posição de reserva, para que o plano não corresse risco", disse
Zelaya à Folha por celular em
meio ao caos na embaixada.
Segundo ele, a decisão pela
embaixada brasileira foi "por
causa da vocação democrática
do Brasil, do presidente Lula e
de Marco Aurélio Garcia [assessor internacional da Presidência]. E também pelo peso
internacional que eles têm".
Único diplomata brasileiro
em Honduras, o ministro-conselheiro Francisco Catunda
Resende confirma que foi tudo
de surpresa e diz que o primeiro contato com a embaixada foi
feito pela deputada Gloria
Oqueli, presidente do Parlamento Centro-Americano.
"Ela bateu aqui com a história de que a mulher do presidente [Xiomara de Zelaya] tinha um assunto urgente para
tratar", relatou Catunda à Folha, também por celular.
Só quando a mulher dele chegou, no final da manhã, é que a
intenção ficou clara. "Aí é que
eles abriram o jogo. Ela entrou
primeiro, seguida por ele, com
mala e tudo", disse o diplomata.
Depois de trocas de telefonemas entre Tegucigalpa, Brasília
e Nova York, onde estava o
chanceler Celso Amorim, finalmente chegou a autorização
para acolher o casal.
Com Zelaya e Xiomara, entraram em torno de dez pessoas. Ontem à noite, já haviam
passado pela embaixada exatas
303 pessoas, entre políticos, líderes de movimentos sociais,
amigos e até curiosos que pularam os muros para se proteger
do ataque de soldados munidos
com gás lacrimogêneo.
Nem Catunda escapou dos
efeitos. Ao abrir a porta para
uma mulher que gritava desesperadamente por socorro, ele
diz que recebeu uma lufada de
gás e passou horas com os olhos
vermelhos e ardendo.
Em outro momento, ele se
recusou a receber um oficial de
Justiça e um promotor que lhe
levavam um documento: "Provavelmente, era uma ordem de
captura, e eu não ia receber documento de um governo que o
Brasil não reconhece, de um
governo inexistente".
O pior, porém, foi a decisão
do governo golpista, liderado
por Roberto Michelleti, de impingir um cerco à embaixada,
cortando luz, água e telefone a
partir da noite de segunda-feira. E a única comida em 24 horas se resumia a pizza contrabandeada por uma vizinha e o
resto de leite e biscoitos dos 12
funcionários.
Às 15h45 (19h45 de Brasília)
de ontem, Catunda relatou que
ainda havia gente comendo resto de pizza fria da véspera.
Àquela hora, eles aguardavam
dois socorros: as quentinhas
enviadas por representantes da
ONU (Organização das Nações
Unidas) e a van que a embaixada americana emprestou para
retirar oito funcionários, entre
brasileiros e hondurenhos.
Um dos brasileiros é diabético, outro toma remédio controlado. Só ficaram com Catunda
um assistente de Chancelaria,
um motorista e um mecânico
(para o gerador de luz).
Em alguns momentos, a embaixada chegou a acolher 70
pessoas simultaneamente o
que, combinado com falta de
água, luz e telefone, gerou um
caos: "Hoje está sendo muito
penoso. Os banheiros estão de
fazer dó", relatou Catunda, cearense de 61 anos, reclamando
que estava há dois dias "só com
a roupa do corpo".
Como Zelaya e a mulher preferiram ficar no escritório, em
vez de ocupar o setor residencial da embaixada, o jeito foi
acomodar hondurenhos e brasileiros por sofás, cadeiras, colchonetes e tapetes, para passarem a noite e o dia de ontem. O
casal presidencial ocupa o gabinete do embaixador, vago desde que o titular, Brian Neele, foi
chamado de volta após o golpe.
Além do desconforto, havia
um grande temor entre os sitiados: o de que o governo golpista
determinasse a invasão da embaixada. Por telefone, tanto Lula quanto Amorim fizeram apelos para que Zelaya não fizesse
nada que pudesse servir de pretexto para a invasão e que mandasse seus aliados de volta para
casa, mantendo o menor número possível de pessoas na
embaixada.
Para Catunda, Amorim deu
uma ordem precisa: "Não vamos bancar os Quixotes!" Ou
seja, em caso de invasão, a
orientação é ninguém reagir
nem abrir a boca, deixando toda a negociação para a ONU e a
OEA (Organização dos Estados
Americanos) em Nova York.
Quanto a Zelaya, parece tudo
bem: "Estou ótimo, muito tranquilo", disse à Folha.
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