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São Paulo, segunda-feira, 24 de março de 2003

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Bombardeio impreciso faz vítimas inocentes


"Por quê?" Quantas vezes já ouvi essas palavras de um inocente? Depois de cada bombardeio eles repetem essa pergunta. Sempre as mesmas palavras


ROBERT FISK
DO "THE INDEPENDENT", EM BAGDÁ

Em meio ao concreto esmagado e à lama, encontrei uma revista da Batwoman. Na página 17, onde a lama manchara o papel, Batwoman estava, estranhamente, resgatando norte-americanos de um edifício de em chamas. Não muito longe da cratera, encontrei um livro de história que registrava o destino do velho rei Faisal e da oposição armada ao domínio britânico no Iraque. O míssil de cruzeiro deixara o livro aberto em uma página que honra o "mártir Mahmoud Bajat". Na parede da sala de visitas, da qual o assoalho tinha desaparecido, o relógio continuava pendurado. Parou exatamente às 19h55.
Foi o momento em que um míssil de cruzeiro atingiu os números 10 e 10A de uma alameda no bairro de Zukah, Bagdá, sábado à noite. Zukah é um bairro de classe média ligeiramente decadente, enfeitado por velhas laranjeiras e buganvílias semimortas, e ocupado por casas de dois andares seriamente necessitadas de muitas demãos de tinta. No final de uma das alamedas há uma escola, e dobrando a esquina um canteiro de obras, mas nenhum alvo militar que eu fosse capaz de discernir.
Amr Ahmed al-Dulaimi é um homem de família -seus 11 filhos e sua mulher estavam no número 10A quando o míssil se lançou contra a casa de seu vizinho, Abdul-Bari Samuriya, soterrando a mulher de Samuriya e seus dois filhos, e deixando uma cratera de seis metros de profundidade no solo. Ele conseguiu escavar as ruínas até encontrá-los -as duas crianças, feridas, continuavam no hospital ontem de manhã-, mas sua casa se fora. Tudo o que restava da sala de estar era um sofá de madeira soterrado sob dois metros de terra, uma mesa quebrada exatamente ao meio pela explosão e um vaso completamente incólume de flores de plástico.
Assim, por que o míssil? Por que os americanos visariam com as suas munições supostamente precisas um pequeno bairro de classe média? Al-Dulaimi dirige uma pequena fábrica de aparelhos mecânicos, e Samuriya é empresário. Será que as cortinas de fumaça preta de petróleo que recobrem Bagdá -uma tentativa das defesas antiaéreas iraquianas de confundir o sistema de orientação dos mísseis- estão talvez funcionando até melhor do que deviam?
Caminhando entre os casos de vidro e os destroços de concreto na rua em frente à casa destruída, encontrei um vizinho -como de hábito, ele não quis me dizer como se chamava- que admitiu que enviara sua família para fora da cidade porque, "na noite de sexta-feira, 15 mísseis nos atingiram". Quinze? No velho e inofensivo bairro de Zukah? O que isso quer dizer? Os fragmentos de mísseis se espalharam por dezenas de casas e homens do serviço de segurança iraquiano vieram ao raiar do dia para recolhê-los.
Mais à frente, outra casa sofrera graves danos, com rachaduras nas paredes, janelas quebradas, o toldo plástico que atravessava o jardim pendendo como um bêbado sobre um canteiro de flores. "Esse foi sempre um bairro tranqüilo", me disse o dono casa. "Nunca, em tempo algum, experimentamos algo assim. Por que, por que, por quê?" Quantas vezes já ouvi essas palavras de um inocente? Depois de cada bombardeio, quando jornalistas os procuram, eles nos repetem essa pergunta. Sempre essas palavras.
E então me lembrei que a rádio iraquiana havia anunciado 24 horas antes e o vice-presidente iraquiano repetira uma hora mais tarde aos jornalistas: "Eles estão tentando assassinar o presidente Saddam Hussein", insistia Taha Yassin Ramadan. "Que espécie de Estado tenta assassinar o líder de outro país e então afirma estar travando uma guerra contra o terrorismo?"
Certamente não resta dúvida de que o primeiro e não muito feroz ataque a uma das residências de Saddam na noite de quinta-feira foi uma tentativa de assassinar o líder iraquiano. Os norte-americanos o admitiram. E a mesma justificativa serviu para o terrível ataque a um abrigo antiaéreo de concreto em Amariya, Bagdá, 12 anos atrás, que causou a morte de mais de 400 inocentes. Foi o general Montgomery que disse aos soldados aliados que desembarcariam no Dia D, em discurso no Granada Cinema, em Maidstone, algumas semanas antes da invasão da Normandia -e ouvi essa história de um homem que estava presente- que, "se você deseja terminar uma guerra, precisa derrubar o papagaio do poleiro".
É isso que os norte-americanos estão tentando fazer? Será que acreditavam que Saddam, que não passa mais que algumas horas em cada local, poderia ter escolhido o arborizado subúrbio de Zukah para passar a noite de 22 de março? Isso é só um palpite. Mas os habitantes dessa pequena alameda em Zukah não estão muito felizes por terem servido de alvo, e eu não saí de lá muito certo, ontem, de que estivessem tão ávidos por ser "libertados".


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