|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O NOVO PAPA
Para o teólogo, o novo papa pode afastar ainda mais os pobres da Igreja Católica
Para Boff, Bento 16 pode trazer "obscurantismo generalizado"
Lalo de Almeida - 9.out.2000/Folha Imagem
|
O teólogo Leonardo Boff foi silenciado pelo cardeal Joseph Ratzinger, hoje papa Bento 16, por defender a Teologia da Libertação |
ANTÔNIO GOIS
DA SUCURSAL DO RIO
Obscurantismo, dificuldade de
diálogo inter-religioso e afastamento ainda maior dos pobres.
Esses são riscos que o teólogo
Leonardo Boff, em entrevista à
Folha, vê no papado de Bento 16.
Boff teve uma relação pessoal
com o novo papa, Joseph Ratzinger, que foi da amizade ao enfrentamento. Segundo o teólogo, ele já
se sentou na mesma cadeira em
que o astrônomo Galileu Galilei
respondeu, em 1663, às acusações
de heresia por defender suas teorias sobre o movimento da terra.
Como "inquisidor" de Boff em razão de sua defesa da Teologia da
Libertação estava Ratzinger.
Para Boff, o novo papa pode pode inaugurar na igreja uma "era
de obscurantismo generalizado",
que pode levá-la à "irrelevância" e
"talvez ao ridículo". Ele diz também que Ratzinger corre o risco
de se tornar "o exterminador do
futuro do ecumenismo intereclesial e inter-religioso".
O Vaticano, segundo Boff, já enquadrou toda a igreja brasileira,
transferindo bispos mais proeminentes para dioceses sem maior
significação e nomeando bispos
mais conservadores, "alguns deles de um papismo espantosamente infantil e adulador", diz.
"Creio que essa linha continuará,
prejudicando os pobres que deixam de contar com o apoio da
igreja em suas lutas por direitos,
reforma agrária, e outras causas
dignas. (...) Se antes estávamos
numa era de seca eclesial, agora
corremos o risco de entrar numa
era de inverno, esperando que
não seja glacial", opina.
Folha - O sr. conviveu com o cardeal Ratzinger antes de ele se tornar prefeito da Congregação para a
Doutrina da Fé, no papado de João
Paulo 2º. Como era esse relacionamento?
Leonardo Boff - Eu o conheci em
1969, na Alemanha, quando me
ajudou a publicar minha tese
doutoral alemã sobre a igreja como sinal e instrumento de salvação no mundo contemporâneo
em contexto de revolução. Ele leu,
gostou e encontrou uma editora,
dando-me ainda uma boa soma
de dinheiro para a publicação.
Desde então, nos relacionávamos
amigavelmente. Era um teólogo
aberto e, quando ia a Munique,
enchia todos os auditórios, pois
suscitava entusiasmo e esperança.
Folha - O que mudou na posição
de Ratzinger, e quais razões o sr.
apontaria para essa mudança?
Boff - Ele estava na universidade
de Tübingen, o centro mais prestigioso da teologia protestante e
católica da Alemanha. Havia
grande efervescência estudantil e
ele entrou em atrito com os estudantes, que preferiam escutar seu
colega Hans Küng em vez dele.
Acabou se desentendendo com
Küng e, mais tarde, já cardeal, tirou dele o título de teólogo católico e sua cátedra de teologia.
Nesse contexto, Ratzinger preferiu ele mesmo sair de Tübingen
e postulou a cátedra em Regensburg, marginal na geografia teológica e cultural da Alemanha. Lá,
ele pode fazer sua teologia mais
voltada para dentro da igreja, morando com o irmão Georg Ratzinger, também padre, que era conservador e simpático ao [arcebispo francês] Marcel Lefèbvre, da
ala ultraconservadora da igreja.
Folha - Qual foi a última ocasião
em que o sr. conversou com Ratzinger?
Boff - Foi numa situação muito
dramática: ele como meu interrogador e eu como inquirido, sentado na mesma cadeirinha onde
sentou Galileu Galilei dentro do
palácio da ex-Inquisição. Respondia a perguntas sobre meu livro
"Igreja: Carisma e Poder", no qual
tentava aplicar a Teologia da Libertação para o interno da Igreja
Católica. Ele me moveu um processo judicial doutrinário em 1984
que acabou por me impor um ano
de "silêncio obsequioso", me depor da cátedra de teologia e me
proibir de escrever e de viajar. Depois, nunca mais nos vimos, embora de vez em quando, até em
suas intervenções escritas, ele ataque uma tese que defendo à luz do
Concílio Vaticano 2º: a de que nas
outras igrejas também se encontra a igreja de Cristo e não apenas
elementos eclesiais, como ele diz.
Folha - Alguns críticos do novo
papa o apontam como um homem
intransigente e disciplinador. O sr.
não acha que essas características,
se verdadeiras, podem atrapalhar
o diálogo inter-religioso?
Boff - O documento doutrinário
mais importante de Ratzinger foi
escrito em 2000 com o título "Dominus Jesus". Ali se afirma a singularidade e unicidade de Cristo
como único salvador e a Igreja
Católica como única igreja verdadeira. Todas as demais igrejas não
podem ser chamadas de igreja,
pois teriam apenas elementos
eclesiais. Pior ainda, ele afirma
que a religião católica é a única
verdadeira com todos os meios de
salvação e que os fiéis de outras
religiões estão em perigo de salvação, pois se encontram fora dela.
Isso configura a arrogância própria dos fundamentalistas.
Destarte, destrói-se todo o diálogo ecumênico, fruto de mais de
50 anos de empenho das várias
igrejas, e se insultam as pessoas
religiosas do mundo inteiro. Mas,
há poucos dias, antes de ser eleito
papa, ele afirmou a um jornalista
credenciado no Vaticano que não
retiraria nenhuma palavra desse
documento. Se isso for verdade,
ele poderá ser o exterminador do
futuro do ecumenismo intereclesial e inter-religioso.
Folha - A leitura mais comum sobre o novo papado é que será um
pontificado ainda mais conservador do que o de João Paulo 2º e de
mais tradicionalismo a respeito
das questões litúrgicas. O sr. concorda com essa análise?
Boff - Se ele mantiver a mesma
atitude de fechamento, apesar de
manter a retórica do diálogo, será
ainda mais conservador que João
Paulo 2º. Este era pastor e tinha
gestos que estavam em contradição com sua teologia, mas os
mantinha. Como em 1986, quando rezou em Assis pela paz junto
com líderes religiosos do mundo
inteiro. É sabido e notório que o
cardeal Ratzinger se opôs a que o
papa fosse a Assis, pois isso seria
um sinal em favor do relativismo,
teologicamente insustentável em
sua opinião. Mas o papa foi. A vida em comunhão com outros é
mais importante que a teologia.
Folha - O sr. acha que, com a eleição de Ratzinger, a igreja aprofunda um ciclo de distanciamento com
o que ainda persiste de ideais da
Teologia da Libertação na Igreja
Católica?
Boff - Acho que não. O Vaticano
age sempre burocraticamente.
Em termos de burocracia, ele deu
por encerrada a polêmica com a
Teologia da Libertação ao escrever em 1984 um documento em
que condenava esta teologia e outro em 1986 em que procurava
resgatar alguns elementos positivos dela. Em nome desses documentos oficiais, enquadrou os
teólogos, os institutos de teologia
e bispos que assumiam em sua
pastoral este tipo de pensamento,
como d. Helder Câmara, o cardeal
d. Paulo Evaristo Arns e o cardeal
d. Aloisio Lorscheider.
Espero que não volte mais a esse
assunto, apesar de que essa teologia, como se viu no Fórum Mundial de Teologia da Libertação,
que aconteceu em Porto Alegre
neste ano uma semana antes do
Fórum Social Mundial, está viva
em todo o Terceiro Mundo, com
bons nomes de teólogos e teólogas das várias correntes.
Folha - Como a eleição de Ratzinger pode afetar a Igreja Católica no
Brasil?
Boff - O Vaticano já havia enquadrado toda a igreja brasileira,
transferindo bispos mais proeminentes para dioceses sem maior
significação e nomeando bispos
mais conservadores, alguns deles
de um papismo espantosamente
infantil e adulador. Creio que essa
linha continuará, prejudicando os
pobres que deixam de contar com
o apoio da igreja em suas lutas por
direitos, reforma agrária e outras
causas dignas. Uma igreja que já
não escuta o grito da humanidade
sofredora dificilmente pode reivindicar ser herdeira de Jesus, por
mais que faça showmissas e outras dramatizações midiáticas.
Folha - Que outros pontos o sr.
acha importante salientar na análise sobre os rumos da igreja após o
novo papa?
Boff - O importante é entender e
insistir em que a igreja não pode
se autofinalizar, pois ela não existe para si mesmo, mas para a humanidade, especialmente para os
pobres e excluídos do mundo e
para a Terra entendida como Gaia
[nome poético dado pelos antigos
gregos à deusa da Terra, muito
usado na teoria holística], ou seja,
como parte integrante de um todo, onde tudo age interligado a
tudo. Essa Terra está sendo perigosamente devastada.
Se ela desqualificar, como fez o
cardeal Ratzinger em sua homilia
antes de começar o conclave, as
correntes de pensamento moderno, tachando-as de expressão da
ditadura do relativismo, a igreja
entrará numa era de obscurantismo generalizado. Tornar-se-á cada vez mas irrelevante e até certo
ponto ridícula, condenando tudo
o que for contra sua visão de
mundo. Ratzinger fez isso até
com o rock e o pop, chamados de
"cultos profanos", e com os homossexuais, definidos como
"anomalias da natureza" cujo casamento seria "imoral, artificial e
nocivo à sociedade", além de outras condenações semelhantes.
Texto Anterior: Fiéis alemães são os mais numerosos Próximo Texto: Saiba mais: Polêmica entre Boff e Ratzinger vem dos anos 80 Índice
|