São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Transição sob crise

"Não ser Bush" une as plataformas dos candidatos

SÉRGIO DÁVILA
DE WASHINGTON

"Eu não sou George W. Bush." Se as plataformas que ambos os candidatos apresentarão nas convenções pudessem ser resumidas em uma frase e tivessem apenas um ponto de inflexão, seria esse: tanto Barack Obama quanto John McCain tentam se vender ao eleitor como alguém diferente do atual presidente norte-americano. O democrata vai mais longe ao basear seus ataques no oponente dizendo que ele será a continuação de Bush.
Os dois sabem o que fazem. O atual ocupante da Casa Branca é o presidente mais mal-avaliado da história recente do país, com índices de popularidade negativos girando em torno dos 70% nos últimos dois anos, os seus dois últimos no cargo. Pesquisas recentes são mais específicas ao apontar o sentimento do norte-americano.
Para 69% dos eleitores de ambos os partidos majoritários ouvidos pelo instituto Gallup, a presidência de Bush é um "fracasso". De acordo com 58% dos entrevistados pela emissora CNN, sua administração entrará para a história como a pior ou uma das piores entre a dos 43 homens que comandaram o país até hoje. E 41% dos que falaram à NBC News e ao "Wall Street Journal" acham que ele é o pior, ponto.
"Sim, eu acho que Bush será visto como autor de uma das piores políticas externas dos Estados Unidos, certamente o pior dos séculos 20 e 21", disse à Folha Joseph Nye, professor de relações internacionais de Harvard. "Há algumas áreas em que foi melhor que outras, como sua política em relação à Aids na África, mas em geral e especificamente no Oriente Médio foi muito, muito mal."
Nye é autor do termo "soft power", "poder suave", a persuasão pela cooperação e influência cultural, em oposição ao "hard power", o poderio militar. Em seu próximo livro, ainda inédito, ele defende que o presidente dos EUA deveria exercer o "smart power", o poder inteligente, que mistura os dois. E que deveria saber o momento de usar um e outro.
"Bush disse que liderar quer dizer decidir, e eu acho que se você decide mas erra no caminho, você vira um "decididor" desastroso", afirmou o autor, que apoia Obama. "Você tem de saber em que condições decidir, quando decidir e com quem você decide, e Bush nunca foi muito bom nisso. Ele usou as ferramentas de "hard power", mas ignorou as de "soft power", e o sucesso requer a combinação das duas."
Quando o presidente Bill Clinton (1993-2001) apresentou o convidado de honra da Convenção Democrata de 2000, em Los Angeles, um jovem político negro de 30 anos que ele definiu como "o futuro do partido" --era o congressista Harold Ford Jr., do Tennessee--, o país gozava de uma economia sólida internamente.
No campo da política externa, no entanto, os Estados Unidos começavam a ver contestada a hegemonia de que gozavam desde o fim da Guerra Fria, nos anos 90. Era a consolidação da União Européia, da ascensão da China e o momento em que entravam em cena economias emergentes como a Índia.
Em menos de dez anos, o mundo passara de bipolar para unipolar e, agora, "não-polar" ou "multipolar", na definição de estudiosos como Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi, depois Niall Ferguson e Richard Hass, no sentido de que o cenário internacional caminhava para ter vários focos de poder. Depois de uma eleição polêmica, Bush assumiu o país nesse contexto, e caminhava para o que ele mesmo acreditava ser uma "presidência pato-manco", com poder de fato reduzido e relativa calmaria.
No meio do caminho, houve o ataque terrorista de 11 de Setembro, que redefiniu o papel dos EUA no mundo --e a presidência de Bush. Em menos de um ano, no entanto, com a condução errada da "guerra certa" (do Afeganistão, em 2002, à qual dedicou menos recursos do que o necessário e nunca desmantelou efetivamente o talebã) e com a decisão de seguir com a "guerra errada" (a invasão do Iraque em 2003), o republicano transformou em saldo negativo o índice de solidariedade mundial que o país havia angariado em 2001.
Em nome da chamada "guerra ao terror", ampliou os poderes do Executivo e atropelou liberdades civis em casa. Além disso, nas palavras de Jane Mayer, autora do recém-lançado "The Dark Side", sob o tacão do vice-presidente, Dick Cheney, esse governo assimilou o uso da tortura como uma ferramenta legítima nessa guerra.
Embora divirjam quanto ao seu projeto de política externa, Obama e McCain concordam na condenação à prática, e o republicano sai de seu caminho para evitar ser visto junto do presidente ou ser associado publicamente à sua figura.

Nem todos são críticos de tudo que traz a marca Bush, no entanto. Nos últimos meses, com o recuo na violência no Iraque e a decisão de revisar políticas isolacionistas em relação à Coréia do Norte e ao Irã, a Casa Branca vem recebendo se não elogios pelo menos reconhecimento de alguns analistas. O jornalista e escritor Fareed Zakaria listou uma série de bons feitos de Bush em capa recente da "Newsweek".
Mais entusiasta foi Edward Luttwak, que escreveu artigo em que diz que a História comparará Bush ao presidente Harry Truman (1884-1972), e a Guerra do Iraque, ao conflito da Coréia (1950-1953). O analista do conservador Center for Strategic and International Studies (CSIS), de Washington, defende que tanto político quanto conflito serão vistos com lentes positivas no futuro.
"Assim como aconteceu com a Coréia, depois vista como uma guerra necessária, que conteve o avanço da China, e Truman, que deixou a Casa Branca com índices recordes de impopularidade para depois ver estudiosos reavaliarem sua atuação no campo externo, o mesmo deve ocorrer com Bush e sua contenção do islamofascismo nos próximos anos", disse ele à Folha.
Luttwak, que já se declarou contra a candidatura de Obama, vê um paradoxo a esperar o próximo presidente, seja ele quem for. "McCain reduzirá os gastos militares de Bush, o que só vai surpreender os que não conhecem o candidato suficientemente bem", disse ele. "Já Obama não poderá fazer isso, sob o risco de assustar demais o establishment."
Em outras palavras, McCain terá a liberdade de não ser Bush, se quiser; Obama não.


Texto Anterior: ESPECIAL
ENCRUZILHADA AMERICANA

Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.