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São Paulo, quarta-feira, 24 de setembro de 2003

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ANÁLISE

Ausência de multilateralismo ameaça futuro da ONU

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

O secretário-geral da ONU, o ganense Kofi Annan, protagonizou ontem um dos maiores e mais surpreendentes (no mundo diplomático) ataques à política externa da única superpotência do planeta, os EUA, do pós-guerra.
Por muito menos, seu predecessor, o egípcio Boutros Boutros-Ghali, teve sua reeleição vetada por Washington, em 1996. Todavia, ciente de que já está em seu segundo e derradeiro mandato e da importância do momento geopolítico para o futuro da organização que comanda, Annan defendeu sua reforma radical e expressou duras críticas à Doutrina Bush, que permite a realização de operações militares preventivas.
Sua preocupação é legítima. Afinal, estão em jogo a ordem mundial do século 21 e o sistema multilateralista encarnado pela ONU. Para Annan, essa doutrina poderá resultar "na proliferação do uso unilateral e ilegal da força". Ora, seria o fim do multilateralismo.
O presidente da França, Jacques Chirac, concordou com Annan -o que não foi uma surpresa. "A guerra, lançada sem a autorização do Conselho de Segurança, estremeceu o sistema multilateralista."
O presidente George W. Bush, que precisa da ajuda de outros Estados na reconstrução do Iraque, pois ela se tornou custosa demais tanto em dinheiro quanto no número de baixas americanas, também não apresentou nada de novo na Assembléia Geral.
É verdade que seu tom foi mais conciliador que em outras oportunidades, chegando até a elogiar a ONU. Contudo ele voltou a defender a guerra, a mencionar as supostas armas de destruição em massa iraquianas e a dizer que o sucesso da ação no Iraque desencadeará um círculo virtuoso no Oriente Médio. Isso sem explicar como o contencioso israelo-palestino, o mais grave da região atualmente, poderá ser resolvido.
Os EUA gostariam de contar com a legitimidade da ONU, mas ainda não estão prontos a mudar de curso para obter ajuda ou fortalecer o multilateralismo, como querem os europeus. Com seu governo dividido, Bush não parece estar inclinado a privilegiar a ala moderada do Departamento de Estado em detrimento dos falcões do Departamento da Defesa.
Apesar da combatividade demonstrada por Annan ontem, a ONU só tem a força que seus membros lhe concedem. Portanto, a médio e longo prazos, se decidirem contorná-la, como no início da guerra, os EUA voltarão a minar profundamente seu poder.
Nesse quadro, novidade é a aparente mudança de atitude da França, da Alemanha e da Rússia, que se opuseram à invasão do Iraque. Elas não parecem estar dispostas a manter-se inflexíveis, já que isso poderia estender o caos da reconstrução iraquiana à ONU ou a outros órgãos internacionais.
Assim, tudo indica que, mesmo sem fazer grandes concessões, os EUA deverão obter a aprovação de um novo texto sobre a reconstrução iraquiana. Uma resolução frouxa, que não atrairá doações vultosas de muitos países. Ademais, vale lembrar que a situação econômica global não é das melhores, o que dificulta ainda mais contribuições financeiras de Estados como o Japão, a França ou a Alemanha para a reconstrução.
Com isso, conforme lembraram Annan e Chirac, o que está em risco é o sistema multilateralista da ONU. Afinal, se se decidirem sistematicamente por evitar enfrentamentos sérios para não agravar crises diplomáticas, todas as grandes potências geopolíticas (não apenas os EUA) só farão debilitá-lo. Como fórum para discussões multilaterais, é da natureza da organização ser palco de disputas diplomáticas -graves ou não.


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