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ANÁLISE
Ausência de multilateralismo ameaça futuro da ONU
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
O secretário-geral da ONU, o
ganense Kofi Annan, protagonizou ontem um dos maiores e mais
surpreendentes (no mundo diplomático) ataques à política externa da única superpotência do
planeta, os EUA, do pós-guerra.
Por muito menos, seu predecessor, o egípcio Boutros Boutros-Ghali, teve sua reeleição vetada
por Washington, em 1996. Todavia, ciente de que já está em seu
segundo e derradeiro mandato e
da importância do momento geopolítico para o futuro da organização que comanda, Annan defendeu sua reforma radical e expressou duras críticas à Doutrina
Bush, que permite a realização de
operações militares preventivas.
Sua preocupação é legítima. Afinal, estão em jogo a ordem mundial do século 21 e o sistema multilateralista encarnado pela ONU.
Para Annan, essa doutrina poderá
resultar "na proliferação do uso
unilateral e ilegal da força". Ora,
seria o fim do multilateralismo.
O presidente da França, Jacques
Chirac, concordou com Annan
-o que não foi uma surpresa. "A
guerra, lançada sem a autorização
do Conselho de Segurança, estremeceu o sistema multilateralista."
O presidente George W. Bush,
que precisa da ajuda de outros Estados na reconstrução do Iraque,
pois ela se tornou custosa demais
tanto em dinheiro quanto no número de baixas americanas, também não apresentou nada de novo na Assembléia Geral.
É verdade que seu tom foi mais
conciliador que em outras oportunidades, chegando até a elogiar
a ONU. Contudo ele voltou a defender a guerra, a mencionar as
supostas armas de destruição em
massa iraquianas e a dizer que o
sucesso da ação no Iraque desencadeará um círculo virtuoso no
Oriente Médio. Isso sem explicar
como o contencioso israelo-palestino, o mais grave da região
atualmente, poderá ser resolvido.
Os EUA gostariam de contar
com a legitimidade da ONU, mas
ainda não estão prontos a mudar
de curso para obter ajuda ou fortalecer o multilateralismo, como
querem os europeus. Com seu governo dividido, Bush não parece
estar inclinado a privilegiar a ala
moderada do Departamento de
Estado em detrimento dos falcões
do Departamento da Defesa.
Apesar da combatividade demonstrada por Annan ontem, a
ONU só tem a força que seus
membros lhe concedem. Portanto, a médio e longo prazos, se decidirem contorná-la, como no início da guerra, os EUA voltarão a
minar profundamente seu poder.
Nesse quadro, novidade é a aparente mudança de atitude da
França, da Alemanha e da Rússia,
que se opuseram à invasão do Iraque. Elas não parecem estar dispostas a manter-se inflexíveis, já
que isso poderia estender o caos
da reconstrução iraquiana à ONU
ou a outros órgãos internacionais.
Assim, tudo indica que, mesmo
sem fazer grandes concessões, os
EUA deverão obter a aprovação
de um novo texto sobre a reconstrução iraquiana. Uma resolução
frouxa, que não atrairá doações
vultosas de muitos países. Ademais, vale lembrar que a situação
econômica global não é das melhores, o que dificulta ainda mais
contribuições financeiras de Estados como o Japão, a França ou a
Alemanha para a reconstrução.
Com isso, conforme lembraram
Annan e Chirac, o que está em risco é o sistema multilateralista da
ONU. Afinal, se se decidirem sistematicamente por evitar enfrentamentos sérios para não agravar
crises diplomáticas, todas as grandes potências geopolíticas (não
apenas os EUA) só farão debilitá-lo. Como fórum para discussões
multilaterais, é da natureza da organização ser palco de disputas
diplomáticas -graves ou não.
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