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ÍNTEGRA
"Está na hora de chamar a paz de justiça social"
Leia a íntegra do discurso do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva na abertura do debate geral da
58ª Assembléia Geral da ONU:
"Que minhas primeiras palavras diante deste
Parlamento Mundial sejam de confiança na capacidade humana de vencer desafios e evoluir
para formas superiores de convivência no interior das nações e no plano internacional. Em
nome do povo brasileiro, reafirmo nossa crença
nas Nações Unidas. Seu papel na promoção da
paz e da justiça permanece insubstituível.
Rendo homenagem ao secretário-geral Kofi
Annan por sua liderança na defesa de um mundo irmanado pelo respeito ao direito internacional e à solidariedade entre as nações.
Esta Assembléia se instala sob o impacto do
brutal atentado à missão da ONU em Bagdá que
vitimou o alto comissário para direitos humanos, nosso compatriota Sérgio Vieira de Mello.
A reconhecida competência de Sérgio nutria-se
das únicas armas em que sempre acreditou: o
diálogo, a persuasão, a atenção prioritária aos
mais vulneráveis. Exerceu, em nome das Nações Unidas, o humanismo tolerante, pacífico e
corajoso que espelha a alma libertária do Brasil.
Que o sacrifício de Sérgio e de seus colegas não
seja em vão. A melhor forma de honrar sua memória é redobrar a defesa da dignidade humana
onde quer que ela esteja ameaçada.
Saúdo fraternalmente o senhor Julian Hunte,
que assume a presidência desta Assembléia em
momento especialmente grave na história da
ONU. A comunidade internacional está diante
de enormes desafios políticos, econômicos e sociais, que exigem esforço acelerado de reforma
da organização, para que nossas decisões e
ações coletivas passem a ser de fato respeitadas
e eficazes.
Senhoras e senhores,
Nesses nove meses como presidente do Brasil, tenho dialogado com líderes de todos os
continentes. Percebo nos meus interlocutores
forte preocupação com a defesa e o fortalecimento do multilateralismo. O aperfeiçoamento
do sistema multilateral é a contraparte necessária do convívio democrático no interior das Nações. Toda nação comprometida com a democracia, no plano interno, deve zelar para que,
também no plano externo, os processos decisórios sejam transparentes, legítimos, representativos.
As tragédias do Iraque e do Oriente Médio só
encontrarão solução num quadro multilateral,
em que a ONU tenha um papel central. No Iraque, o clima de insegurança e as tensões crescentes tornam ainda mais complexo o processo
de reconstrução nacional. A superação desse
impasse somente poderá ser assegurada a partir
da liderança da ONU. Não apenas no restabelecimento de condições aceitáveis de segurança,
mas também na condução do processo político,
com vistas à restauração plena da soberania iraquiana no mais breve prazo. Não podemos fugir a nossas responsabilidades coletivas. Pode-se talvez vencer uma guerra isoladamente. Mas
não se pode construir a paz duradoura sem o
concurso de todos.
Senhor presidente,
Dois anos depois, ainda estão vivas em nossa
memória as imagens do bárbaro atentado de 11
de setembro. Existe, hoje, louvável disposição
de adotar formas mais efetivas de combate ao
terrorismo, às armas de destruição em massa,
ao crime organizado. Constata-se, no entanto,
preocupante tendência de desacreditar a nossa
Organização e até mesmo de desinvestir a ONU
de sua autoridade política. Sobre esse ponto não
deve haver qualquer ambigüidade. A ONU não
foi concebida para remover os escombros dos
conflitos que ela não pôde evitar, por mais valioso que seja o seu trabalho humanitário. Nossa tarefa central é preservar os povos do flagelo
da guerra. Buscar soluções negociadas com base nos princípios da Carta de São Francisco.
Não podemos confiar mais na ação militar do
que nas instituições que criamos com a visão da
história e a luz da razão.
A reforma da ONU tornou-se um imperativo, diante do risco de retrocesso no ordenamento político internacional. É preciso que o
Conselho de Segurança esteja plenamente equipado para enfrentar crises e lidar com as ameaças à paz. Isso exige que seja dotado de instrumentos eficazes de ação. É indispensável que as
decisões deste Conselho gozem de legitimidade
junto à Comunidade de Nações como um todo.
Para isso, sua composição, em especial no que
se refere aos membros permanentes, não pode
ser a mesma de quando a ONU foi criada há
quase 60 anos.
Não podemos ignorar as mudanças que se
processaram no mundo, sobretudo a emergência de países em desenvolvimento como atores
importantes no cenário internacional muitas
vezes exercendo papel crucial na busca de soluções pacíficas e equilibradas para os conflitos.
O Brasil está pronto a dar a sua contribuição.
Não para defender uma concepção exclusivista
da segurança internacional. Mas para refletir as
percepções e os anseios de um continente que
hoje se distingue pela convivência harmoniosa e
constitui um fator de estabilidade mundial. O
apoio que temos recebido, na América do Sul e
fora dela, nos estimula a persistir na defesa de
um Conselho de Segurança adequado à realidade contemporânea. É fundamental igualmente
devolver ao Conselho Econômico e Social o papel que lhe foi atribuído pelos fundadores da
Organização. Queremos um Ecosoc capaz de
participar ativamente da construção de uma ordem econômica mundial mais justa. Um Ecosoc que, além disso, colabore com o Conselho
de Segurança na prevenção de conflitos e nos
processos de reconstrução nacional.
A Assembléia Geral, por sua vez, precisa ser
politicamente fortalecida para, sem dissipação
de esforços, dedicar-se aos temas prioritários. A
Assembléia Geral tem cumprido papel relevante ao convocar as grandes Conferências e outras
reuniões sobre direitos humanos, meio ambiente, população, direitos da mulher, discriminação racial, Aids, desenvolvimento social. Mas
ela não deve hesitar em assumir suas responsabilidades na administração da paz e segurança
internacionais. A ONU já deu mostras de que há
alternativas jurídicas e políticas para a paralisia
do veto e as ações sem endosso multilateral. A
paz, a segurança, o desenvolvimento e a justiça
social são indissociáveis.
Senhor presidente,
O Brasil tem se esforçado para praticar com
coerência os princípios que defende. O novo relacionamento que estamos estabelecendo com
os vizinhos do continente sul-americano baseia-se no respeito mútuo, na amizade e na cooperação. Estamos indo além das circunstâncias
históricas e geográficas que compartilhamos,
para criar um inédito sentimento de parentesco
e de parceria. Neste contexto, nossa relação com
a Argentina é fundamental. A América do Sul
afirma-se cada vez mais como região de paz, democracia e desenvolvimento, que pode, inclusive, ser uma nova fronteira de crescimento para
a economia mundial há anos estagnada. Além
de aprofundar as relações já muito relevantes
com nossos tradicionais parceiros da América
do Norte e da Europa, buscamos ampliar e diversificar nossa presença internacional.
Nas parcerias com a China e com a Rússia, estamos descobrindo novas complementaridades. Somos, com muito orgulho, o país com a
segunda maior população negra do mundo. Em
novembro, deverei visitar cinco países da África
Austral, para dinamizar nossa cooperação econômica, política, social e cultural. Vamos também realizar um encontro de cúpula entre os
países sul-americanos e os Estados que compõem a Liga Árabe. Com a Índia e a África do
Sul estabelecemos um foro trilateral, orientado
para a concertação política e projetos de interesse comum.
O protecionismo dos países ricos penaliza injustamente os produtores eficientes das nações
em desenvolvimento. Além disso, é hoje o
maior obstáculo para que o mundo possa ter
uma nova época de progresso econômico e social.
O Brasil e seus parceiros do G-22 sustentaram na reunião da OMC em Cancún que esta
grave questão pode ser resolvida por meio da
negociação pragmática e mutuamente respeitosa, que leve à efetiva abertura dos mercados.
Reafirmo nossa disposição de buscar caminhos
convergentes, que beneficiem a todos, levando
em conta as necessidades dos países em desenvolvimento.
Somos favoráveis ao livre comércio, desde
que tenhamos oportunidades iguais de competir. A liberalização deve ocorrer sem que os países sejam privados de sua capacidade de definir
políticas nos campos industrial, tecnológico, social e ambiental.
No Brasil, estamos instaurando um novo
modelo capaz de conjugar estabilidade econômica e inclusão social. As negociações comerciais não são um fim em si mesmo. Devem servir à promoção do desenvolvimento e à superação da pobreza. O comércio internacional deve
ser um instrumento não só de criação, mas de
distribuição de riqueza.
Senhor presidente,
Reitero perante esta Assembléia verdadeiramente universal o apelo que dirigi aos Fóruns
de Davos e Porto Alegre e à Cúpula Ampliada
do G-8, em Evian. Precisamos engajar-nos política e materialmente na única guerra da qual
sairemos todos vencedores: a guerra contra a
fome e a miséria.
Erradicar a fome no mundo é um imperativo
moral e político. E todos sabemos que é factível.
Se houver de fato vontade política de realizá-lo.
Não me agrada repisar as evidências da barbárie. Prefiro sempre louvar progressos, por modestos que sejam. Mas não há como omitir os
números que expõem a chaga terrível da miséria e da fome no mundo. A fome, hoje, atinge
cerca de 1/4 da população mundial incluindo
300 milhões de crianças. Diariamente, 24 mil
pessoas são vitimadas por doenças decorrentes
da desnutrição. Nada é tão absurdo e inaceitável
quanto à persistência da fome em pleno século
21, a idade de ouro da ciência e da tecnologia.
A cada dia a inteligência humana amplia o
horizonte do possível, realizando prodigiosas
invenções. E, no entanto, a fome continua e, o
que é mais grave, se alastra em várias regiões do
planeta. Quanto mais a humanidade parece
aproximar-se de Deus pela capacidade de criar,
mais o renega pela incapacidade de respeitar e
proteger suas criaturas. Quanto mais o celebramos ao gerar riquezas, mais o ferimos por não
saber, minimamente, reparti-las. De que vale
toda essa genialidade científica e tecnológica,
toda a abundância e o luxo que ela é capaz de
produzir, se não a utilizamos para garantir o
mais sagrado dos direitos: o direito à vida? Recordo a lúcida advertência de Paulo 6º, feita 36
anos atrás, mas de desconcertante atualidade:
"Os povos da fome dirigem-se hoje, de modo
dramático, aos povos da opulência". A fome é
uma emergência e como tal deve ser tratada.
Sua erradicação é uma tarefa civilizatória, que
exige um atalho para o futuro. Vamos agir para
acabar com a fome ou imolar nossa credibilidade na omissão?
Não temos mais o direito de dizer que não estávamos em casa quando bateram à nossa porta
e pediram solidariedade. Não temos o direito de
dizer aos famintos que já esperaram tanto: passem no próximo século. O verdadeiro caminho
da paz é o combate sem tréguas à fome e à miséria, numa formidável campanha de solidariedade capaz de unir o planeta ao invés de aprofundar as divisões e o ódio que conflagram os povos e semeiam o terror. Apesar do fracasso dos
modelos que privilegiam a geração de riqueza
sem reduzir a miséria, a miopia e o egoísmo de
muitos ainda persistem.
Desde 1º de janeiro, logramos no Brasil avanços significativos em nossa economia. Recuperamos a estabilidade e criamos as condições para um novo ciclo de crescimento sustentado.
Continuaremos a trabalhar com vigor para
manter o equilíbrio das contas públicas e reduzir a vulnerabilidade externa. Não mediremos
esforços para aumentar as exportações, ampliar
a capacidade de poupança, atrair investimentos
e voltar a crescer. Mas devemos ser capazes, ao
mesmo tempo, de atender as necessidades de
alimentação, emprego, educação e saúde de dezenas de milhões de brasileiros abaixo da linha
da pobreza. Temos o compromisso de realizar
um grande reforma social no país.
A fome é o aspecto mais dramático e urgente
de uma situação de desequilíbrio estrutural, cuja correção requer políticas integradas para a
promoção da cidadania plena. Por isso, lancei
no Brasil o projeto "Fome Zero", que visa por
meio de um grande movimento de solidariedade e de um programa abrangente envolvendo o
governo, a sociedade civil e o setor privado eliminar a fome e suas causas.
O programa conjuga medidas estruturais e
emergenciais e já atende quatro milhões de pessoas que não tinham sequer o direito de comer
todos os dias. Nossa meta é que até o final de
meu governo nenhum brasileiro passe fome.
Senhor presidente,
As Nações Unidas aprovaram as Metas do
Milênio. A FAO possui notável experiência técnica e social. Mas precisamos dar um salto de
qualidade no esforço mundial de luta contra a
fome. Propus, nesse sentido, a criação de um
Fundo Mundial de Combate à Fome e sugeri
formas de viabilizá-lo.
Existem outras propostas, algumas já incorporadas a programas das Nações Unidas.O que
faltou até agora foi a imprescindível vontade
política de todos nós, especialmente daqueles
países que mais poderiam contribuir. De nada
servem os fundos se ninguém aporta recursos.
As Metas do Milênio são louváveis mas, se continuarmos omissos, se o nosso comportamento
coletivo não mudar, permanecerão no papel e a
frustração será imensa.
É preciso, mais do que nunca, transformar
intenção em gesto. É preciso praticar o que pregamos. Com audácia e bom senso. Com ousadia e pés no chão. Inovando no conteúdo e na
forma. Adotando métodos e soluções novas,
com intensa participação social. Por isso, submeto à consideração dessa Assembléia a hipótese de criar, no âmbito da própria ONU, um Comitê Mundial de Combate à Fome, integrado
por chefes de Estado ou de Governo, de todos os
continentes, com o fim de unificar propostas e
torná-las operativas.
Esperamos motivar contribuições financeiras de países desenvolvidos e em desenvolvimento, de acordo com as possibilidades de cada
um, bem como de grandes empresas privadas e
organizações não governamentais.
Senhor presidente,
Minha experiência de vida e minha trajetória
política ensinaram-me a acreditar acima de tudo na força do diálogo. Nunca me esquecerei da
lição insuperável de Ghandi: "A violência, quando parece produzir o bem, é um bem temporário; enquanto o mal que faz é permanente". O
diálogo democrático é o mais eficaz de todos os
instrumentos de mudança. A mesma determinação que meus companheiros e eu estamos
empregando para tornar a sociedade brasileira
mais justa e humana, empregarei na busca de
parcerias internacionais com vistas a um desenvolvimento equânime e a um mundo pacífico,
tolerante e solidário.
Este século, tão promissor do ponto de vista
tecnológico e material, não pode cair em um
processo de regressão política e espiritual. Temos a obrigação de construir, sob a liderança
fortalecida das Nações Unidas, um ambiente internacional de paz e concórdia. A verdadeira
paz brotará da democracia, do respeito ao direito internacional, do desmantelamento dos arsenais mortíferos e, sobretudo, da erradicação definitiva da fome.
Senhor presidente, chefes de Estado e de Governo,
Não podemos frustrar tanta esperança. O
maior desafio da humanidade e, ao mesmo
tempo, o mais belo é justamente este: humanizar-se. É hora de chamar a paz pelo seu nome
próprio: justiça social. Tenho certeza de que,
juntos, saberemos colher a oportunidade histórica da justiça.
Muito obrigado."
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