São Paulo, segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

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País expõe contradições de forças de paz

Nações em desenvolvimento fornecem capacetes azuis, mas objetivos são definidos pelo Conselho de Segurança da ONU

Brasil apresenta operação em termos de liderança na região e de solidariedade Sul-Sul, mas o mandato da missão na prática é limitado

CLAUDIA ANTUNES
DA SUCURSAL DO RIO

A presença do Brasil no Haiti se enquadra no movimento de redefinição da segurança coletiva no pós-Guerra Fria, com a multiplicação de operações da ONU para enfrentar conflitos internos e emergências humanitárias em países pobres e dados como "falidos".
As missões são aprovadas pelo Conselho de Segurança (CS), onde as cinco potências reconhecidas no período histórico anterior (EUA, Rússia, China, França e Reino Unido) têm maior peso na definição de seus objetivos. Mas 90% das forças para as 17 operações atuais vêm de países em desenvolvimento.
No caso do Brasil, essa contradição é ressaltada pelo fato de o governo definir a atuação no Haiti em termos de liderança regional, da intensificação da cooperação Sul-Sul e do pretendido papel de mediador entre países ricos e pobres.
Mas a Minustah, a força de paz, não tem preponderância na articulação com o governo haitiano dos projetos de reconstrução. Seu mandato é prover segurança, embora a "interconexão" com o desenvolvimento socioeconômico esteja contemplada nas resoluções do CS.
Frequentemente, quem dita as regras sobre o destino da ajuda ao desenvolvimento do Haiti são os maiores doadores, incluindo EUA, França, Canadá e os bancos multilaterais. No sábado, o chanceler Celso Amorim sugeriu que o Brasil lidere o esforço de reconstrução do país, num "plano Lula", mesmo que não seja o principal provedor de fundos.
"O mandato da missão, reduzindo o componente militar e ampliando a cooperação para o desenvolvimento, já tinha que ter sido redefinido", diz Antonio Jorge Ramalho da Rocha, professor da UnB que implantou o Centro de Estudos Brasileiros em Porto Príncipe.
Ele ecoa reivindicação que vem do início de 2008, quando a Minustah avaliou que a violência na capital haitiana estava controlada.

"Não indiferença"
Em artigo, Maria Regina Soares de Lima, do Observatório Político Sul-Americano, analisa a expansão das atribuições do CS, impulsionada pelo fim da bipolaridade EUA-URSS. Nos primeiros 40 anos da ONU, foram aprovadas 13 operações de paz. As demais 50 vieram no período posterior a 1988.
Os EUA, envolvidos nas próprias guerras, financiam, mas contribuem hoje com 75 pessoas no total das operações. Para emergentes como Brasil e Índia, no entanto, integrá-las passou a ser parâmetro de influência no sistema de segurança coletiva, por sua vez interligada ao debate inconclusivo sobre a ampliação do CS.
Matias Spektor, coordenador do Centro de Estudos sobre Relações Internacionais da FGV-Rio, lembra que críticos viram na proliferação das operações a intenção de criar "neoprotetorados", mas o tema é complexo.
Primeiro, partiu das potências ocidentais a defesa das "intervenções humanitárias". O conceito evoluiu para a "responsabilidade de proteger". Por razão óbvia de assimetria de poder, os demais países resistem à relativização do princípio da não intervenção. Mas, após o genocídio de 1994 em Ruanda, os africanos acabaram forjando o "princípio da não indiferença".
Ele já foi citado pelo governo Lula para justificar tanto a presença no Haiti como a mediação da crise institucional na Bolívia, em 2008, e a cooperação com países pobres em áreas como agricultura e remédios.
"O Brasil tem como mostrar que há maneiras de promover a governança em países falidos ou que passaram por tragédias sem seguir a lógica do neocolonialismo", afirma Spektor.
Ele ressalta, porém, continuidades na política externa. A intervenção para evitar golpe no Paraguai e a adoção da cláusula democrática do Mercosul, no governo FHC, foram passos, diz, da mudança "lenta" de "uma posição apenas soberanista para outra mais flexível".
Embora seja a primeira vez que comanda uma força de paz, o Brasil participa dessas operações desde os anos 1950, quando mandou tropas ao Oriente Médio após o ataque franco-britânico-israelense ao Egito, que havia nacionalizado o canal de Suez.
A maior contribuição brasileira até agora fora para as missões em Angola, ao fim da guerra civil. O Brasil quis liderar a força enviada a Timor Leste após a independência, em 1999, mas foi atropelado por restrição orçamentária depois da crise asiática.
A maioria dessas operações foi de "manutenção da paz", e não de "imposição da ordem", como foram, por exemplo, as na Somália em 1992 e no Haiti no final de 2003.


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