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DIÁRIO DE BAGDÁ
Privação, sustos e Saddam
Comércio está 95% fechado, e a cidade, 95% mais triste
Táxis ganham dinheiro com jornalistas e escudos humanos
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SÉRGIO DÁVILA, ENVIADO ESPECIAL
Bagdá é chamada pelo mundo
árabe de "a noiva do Oriente Médio". Os norte-americanos acham
que estão vindo para protegê-la.
Os iraquianos crêem que eles
queiram violá-la. Daí a guerra.
É mais complicado que isso, claro. Mas o fato é que a noiva vai
mal. Desde o começo do conflito,
na quarta, os dias em Bagdá são
muito parecidos uns com os outros e baseados num tripé: privação, sustos e Saddam Hussein.
O comércio continua 95% fechado, o que significa dizer que a
alma da cidade está 95% mais triste. Há algumas farmácias abertas,
que vendem remédios feitos localmente ou vindos dos países do
Golfo, algumas lojas que vendem
produtos de primeira necessidade
como água e álcool, e dez restaurantes, quase todos ruins.
A exceção é o Al Lathicia, de comida síria, na descolada rua Arassat, que faz um homos matador.
Isso quando o entregador de
grão-de-bico não deixa de vir de
manhã com medo de bomba. Refeição completa para quatro sem
sobremesa não chega a US$ 40.
Sem cerveja. Apenas os restaurantes cristãos vendem cerveja
em Bagdá, e estão todos fechados.
Há mais cristãos em Bagdá do
que supõe a vã filosofia ocidental,
embora o governo não forneça
números oficiais.
Nas delis, os preços sobem a cada dia, pois o dinar iraquiano se
desvaloriza a cada dia. Um dólar
valia 1.800 dinares até a segunda-feira antes da guerra. Hoje, compra 3.500 dinares. Que, por sua
vez, compram uma garrafa de
água.
Apenas cinco hospitais continuam de plantão, os cinco maiores. Todos são estatais, claro.
Os ônibus e trens circulam com
10% da frota. Não existe metrô. Os
táxis, não: estão todos nas ruas,
ganhando dinheiro com os jornalistas e os escudos humanos que
vieram para a guerra.
Um dos escudos, que prefere ser
chamado de "voluntário da paz",
é o finlandês Aayad Alobaidi, 44,
engenheiro elétrico, que deixou
mulher e filha de dez anos em casa. "É o preço da liberdade", filosofa. Ele não reclama do dia-a-dia
em Bagdá. Acorda, apalpa-se para
ver se continua vivo, vai à internet
falar com os amigos, almoça, anda, janta e volta para um dos alvos
civis, como a usina elétrica.
Há 25 centros de internet em
Bagdá, que tem 4,5 milhões de
pessoas. Todos são tocados por
funcionários do governo. Não há
internet nas casas. Nem celular.
Nem conexão de alta velocidade.
Desde quarta-feira passada, nem
ligação interurbana.
A cidade vive um feriado bancário e de serviços não-essenciais
prolongado. Como a maioria da
população oficialmente empregada é de funcionários públicos, estão todos praticamente de férias.
Quem tinha dinheiro fugiu para o
interior, longe das bombas. Como
o músico Daud Al Kaisi, que declarou seu apoio a Saddam Hussein, mas estava tratando de fugir
de Bagdá nas últimas horas.
"Apoio de longe."
Na TV, o dia inteiro, o assunto é
só a guerra. Diferentemente do
mundo ocidental mais diretamente sob a órbita norte-americana, no entanto, não é a notícia
que é privilegiada, já que toda a
informação é controladíssima,
centralizada no Ministério da Informação (que controla as emissoras, edita os jornais e revistas
etc.) e distribuída a conta-gotas.
Assim, os canais e as rádios se
transformam em algo difícil de
explicar. Imagine se a TV brasileira transmitisse o desfile de Carnaval do Rio de Janeiro o ano inteiro
e o assunto de todas as escolas de
samba fosse um só: Saddam Hussein. É mais ou menos assim.
São convocados os principais
cantores do país, das três gerações
-os cantores no Iraque são divididos por idade, não por gênero,
já que todos cantam o que se convencionou chamar de "música
iraquiana", uma variação da música árabe. Estes passam o dia em
videoclipes patrióticos e bélicos.
Aparecem invariavelmente de
terno, gesticulando como se numa peça infantil e cantando as
qualidades do ditador e do Exército iraquianos.
Acompanhando-os, imagens de
guerreiros disparando para o alto,
desfiles militares, multidões louvando Saddam Hussein e o próprio, em eventos públicos, em que
assina documentos, atira com um
fuzil, dança um pouco e acena para o público.
Depois de uma semana, você se
vê acompanhando as melodias e
até mesmo "torcendo" por seu
cantor favorito. O meu é Nezar Al
Samarai, da nova geração. Canta
uma música triste, triste.
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