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São Paulo, terça-feira, 25 de março de 2003

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DIÁRIO DE BAGDÁ

Privação, sustos e Saddam


Comércio está 95% fechado, e a cidade, 95% mais triste

Táxis ganham dinheiro com jornalistas e escudos humanos



SÉRGIO DÁVILA, ENVIADO ESPECIAL

Bagdá é chamada pelo mundo árabe de "a noiva do Oriente Médio". Os norte-americanos acham que estão vindo para protegê-la. Os iraquianos crêem que eles queiram violá-la. Daí a guerra.
 
É mais complicado que isso, claro. Mas o fato é que a noiva vai mal. Desde o começo do conflito, na quarta, os dias em Bagdá são muito parecidos uns com os outros e baseados num tripé: privação, sustos e Saddam Hussein.
 
O comércio continua 95% fechado, o que significa dizer que a alma da cidade está 95% mais triste. Há algumas farmácias abertas, que vendem remédios feitos localmente ou vindos dos países do Golfo, algumas lojas que vendem produtos de primeira necessidade como água e álcool, e dez restaurantes, quase todos ruins.
 
A exceção é o Al Lathicia, de comida síria, na descolada rua Arassat, que faz um homos matador. Isso quando o entregador de grão-de-bico não deixa de vir de manhã com medo de bomba. Refeição completa para quatro sem sobremesa não chega a US$ 40.
 
Sem cerveja. Apenas os restaurantes cristãos vendem cerveja em Bagdá, e estão todos fechados.
 
Há mais cristãos em Bagdá do que supõe a vã filosofia ocidental, embora o governo não forneça números oficiais.
 
Nas delis, os preços sobem a cada dia, pois o dinar iraquiano se desvaloriza a cada dia. Um dólar valia 1.800 dinares até a segunda-feira antes da guerra. Hoje, compra 3.500 dinares. Que, por sua vez, compram uma garrafa de água.
 
Apenas cinco hospitais continuam de plantão, os cinco maiores. Todos são estatais, claro.
 
Os ônibus e trens circulam com 10% da frota. Não existe metrô. Os táxis, não: estão todos nas ruas, ganhando dinheiro com os jornalistas e os escudos humanos que vieram para a guerra.
 
Um dos escudos, que prefere ser chamado de "voluntário da paz", é o finlandês Aayad Alobaidi, 44, engenheiro elétrico, que deixou mulher e filha de dez anos em casa. "É o preço da liberdade", filosofa. Ele não reclama do dia-a-dia em Bagdá. Acorda, apalpa-se para ver se continua vivo, vai à internet falar com os amigos, almoça, anda, janta e volta para um dos alvos civis, como a usina elétrica.
 
Há 25 centros de internet em Bagdá, que tem 4,5 milhões de pessoas. Todos são tocados por funcionários do governo. Não há internet nas casas. Nem celular. Nem conexão de alta velocidade. Desde quarta-feira passada, nem ligação interurbana.
 
A cidade vive um feriado bancário e de serviços não-essenciais prolongado. Como a maioria da população oficialmente empregada é de funcionários públicos, estão todos praticamente de férias. Quem tinha dinheiro fugiu para o interior, longe das bombas. Como o músico Daud Al Kaisi, que declarou seu apoio a Saddam Hussein, mas estava tratando de fugir de Bagdá nas últimas horas. "Apoio de longe."
 
Na TV, o dia inteiro, o assunto é só a guerra. Diferentemente do mundo ocidental mais diretamente sob a órbita norte-americana, no entanto, não é a notícia que é privilegiada, já que toda a informação é controladíssima, centralizada no Ministério da Informação (que controla as emissoras, edita os jornais e revistas etc.) e distribuída a conta-gotas.
 
Assim, os canais e as rádios se transformam em algo difícil de explicar. Imagine se a TV brasileira transmitisse o desfile de Carnaval do Rio de Janeiro o ano inteiro e o assunto de todas as escolas de samba fosse um só: Saddam Hussein. É mais ou menos assim.
 
São convocados os principais cantores do país, das três gerações -os cantores no Iraque são divididos por idade, não por gênero, já que todos cantam o que se convencionou chamar de "música iraquiana", uma variação da música árabe. Estes passam o dia em videoclipes patrióticos e bélicos. Aparecem invariavelmente de terno, gesticulando como se numa peça infantil e cantando as qualidades do ditador e do Exército iraquianos.
 
Acompanhando-os, imagens de guerreiros disparando para o alto, desfiles militares, multidões louvando Saddam Hussein e o próprio, em eventos públicos, em que assina documentos, atira com um fuzil, dança um pouco e acena para o público.
 
Depois de uma semana, você se vê acompanhando as melodias e até mesmo "torcendo" por seu cantor favorito. O meu é Nezar Al Samarai, da nova geração. Canta uma música triste, triste.


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