São Paulo, Domingo, 25 de Abril de 1999
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Taxista se despede da família e vai à guerra

do enviado especial

Mirko Bozic, 29, despede-se da família na madrugada de sexta para sábado. Convocado pelo Exército iugoslavo para se apresentar a um batalhão no subúrbio de Belgrado, não tem idéia de quando terá uma folga. Sua especialidade: bateria antiaérea. Um dos postos mais perigosos nesta guerra.
A mulher, Biljana, 30, teve de tomar um calmante. O filho Nicola, 4, não sabe para onde o pai vai. Biljana diz que não contará, mas o garoto está desconfiado.
De manhã, quando ela e Mirko foram a um quartel para se certificar da convocação, levaram Nicola. Disseram que era um hospital. "Mas ele estranhou tanta gente vestida de verde", conta Biljana.
"Estou confuso. Só sei que é minha obrigação. Meu país está sendo atacado e tenho de ir", diz Mirko, motorista de táxi que não tem preconceito contra kosovares albaneses. Ficou amigo do repórter da Folha, a quem convidou para tomar uma cerveja em casa.
Mirko vive com os sogros em um apartamento em Nova Belgrado, parte da capital iugoslava que lembra Brasília, com blocos de edifícios iguais e avenidas largas. Seus cunhados passam aquela noite lá.
Todos procuram criar uma clima de descontração. Dragan, cunhado de Mirko, é fanático por futebol e adora falar do Carnaval brasileiro e de suas "mulatas".
Normalmente calado, Mirko tenta animar a mulher, normalmente falante. "Sei que tenho esposa e filho, vou me cuidar", afirmou, bem alto, para Biljana ouvir. Ela sorri de maneira triste.
Enquanto Dime Mihajloski, o sogro, fala de ""como era boa a vida na antiga Iugoslávia", ouve-se o barulho de uma explosão. São 2h06. As cortinas balançam bruscamente, devido ao deslocamento de ar. A TV apaga e volta fora do ar.
Maja, a cunhada, dá um pulo no sofá. Dime pede calma. Biljana fala rápida e nervosamente: "Nicola, Nicola". Mirko e a sogra, Milica, correm até o quarto, onde o garoto dorme um sono pesado. Voltam e tranquilizam a mãe.
Passado o susto, todos vão para a varanda. Dá para ver uma fumaça a cerca de 3 km. Foi atingida a RTS (Rádio e Televisão da Sérvia).
Mirko convida para ir à cobertura do prédio, onde vizinhos passam a noite olhando explosões e o fogo antiaéreo. "Não fale nada", pede, para que ninguém saiba que tem a visita de um estrangeiro. Pessoas entrevistadas pela Folha já receberam a visita da polícia.
O céu está limpo e estrelado, noite perfeita para bombardeios. "Ruim para nós", diz Mirko. Bjliana diz que nunca tinha reparado em Belgrado. "Só com a guerra descobri que minha cidade era bonita. Não quero que a destruam."
Passam das 3h, e a visita decidi ir embora. "Ninguém vai dormir aqui hoje, fique mais", pede Maja. No Peugeot 604, ano 82, que, segundo Mirko, só Deus sabe quantos quilômetros rodados tem, avista-se o edifício bombardeado.
Mirko não conta para onde vai. "É segredo militar, desculpe", diz. Despede-se, prometendo que desviará das bombas. Uma nova rodada de cerveja já está combinada, assim que der, depois do fim da guerra. (KA)


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