São Paulo, Domingo, 25 de Abril de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Situação de refugiados ainda vai piorar e Otan não ajuda, diz ONU

PIERRE HAZAN
do "Libération"

A ajuda aos refugiados de Kosovo é um tema que vem criando rivalidade entre a Otan e a ONU. O Acnur (Alto Comissariado da ONU para os Refugiados) critica a aliança militar ocidental por não destinar informação e recursos necessários para o atendimento à população de etnia albanesa.
"Não tenho nem capacidade logística, nem uma frota de centenas de aviões", reclama a diretora (comissária) do Acnur, a japonesa Sadako Ogata.
"O Acnur deve dirigir essa operação humanitária, mas não pode fazê-lo sem uma contribuição dos países da Otan." Leia a seguir trechos de sua entrevista.
Pergunta - Segundo a Otan, centenas de milhares de pessoas estariam sendo expulsas de suas casas em Kosovo. Quais informações a sra. tem?
Sadako Ogata -
Estou extremamente inquieta. Há algumas semanas não há mais presença internacional em Kosovo. As pessoas seguem sendo expulsas de suas casas. Assistimos a um processo de expulsão em massa posto em prática pelas autoridades sérvias. Por essa razão -vi habitantes de Pristina que foram colocados em trens- que falo de deportados. Ninguém previa que expulsões dessa magnitude poderiam ser feitas. Até a crise de Kosovo, eu sabia que minorias, no passado, haviam sido expulsas de sua terra. Eu nunca tinha ouvido falar, nem podia imaginar, que populações majoritárias pudessem também ser vítimas de ""limpeza étnica". Essa ""limpeza étnica" deve cessar imediatamente. Se perdurar, o sofrimento das vítimas seguirá, mesmo se trouxermos toda a ajuda do mundo.
Pergunta - A sra. acredita que houve massacres em Kosovo?
Ogata -
Estou convencida de que massacres ocorreram. Racak (vilarejo onde cerca de 40 pessoas foram mortas por forças sérvias em janeiro) foi só um exemplo.
Pergunta - O que a sra. responde aos críticos que atacaram o Acnur por sua falta de velocidade?
Ogata -
Nunca encontrei ninguém que pudesse imaginar que uma catástrofe como essa pudesse se produzir. Tínhamos planos para acolher 100 mil pessoas, mas fomos lentos ao colocá-los em prática. Tínhamos de reorientar nosso pessoal enviado a Kosovo. De fato, perdemos uma semana. Depois, não tivemos muita visibilidade na imprensa, o que contribuiu para o aumento das críticas.
Pergunta - Quais são suas relações com a Otan, uma organização militar que deixou de lado a ONU, da qual a sra. é funcionária?
Ogata -
São relações complicadas, mas vou tentar simplificá-las. Pedi à Otan que compartilhe conosco suas informações sobre populações deslocadas que ela obtém por meio de sua vigilância aérea. Mas, até agora, ela se negou a fazê-lo. No fundo, a situação é clara. O fato de a Otan ser uma das partes em guerra está separado do fato de que necessito da ajuda dos países da aliança atlântica para fazer frente às necessidades. Não tenho nem milhares de homens, nem capacidade logística, nem uma frota de centenas de aviões. O Acnur deve dirigir essa operação humanitária, mas não pode fazê-lo sem uma contribuição dos países da Otan, que têm os meios necessários para uma operação dessa envergadura.
Pergunta - A sra. receia que, a longo prazo, os problemas de segurança cheguem aos campos?
Ogata -
Não imediatamente. Mas estamos muito atentos para que os campos não abriguem combatentes. A Otan nos está passando a gestão dos campos e, de agora em diante, contamos também com a polícia local para dissuadir os círculos mafiosos e criminais de penetrar nesses ambientes.
Pergunta - A polícia da Macedônia não deu provas de pouca compaixão em relação aos refugiados?
Ogata -
Ela é, por vezes, brutal.
Pergunta - Onde a sra. estava no processo de recepção dos refugiados?
Ogata -
O governo macedônio foi extremamente claro sobre o fato de que não queria abrigar muitos refugiados. Cabe a ele manter um equilíbrio étnico, econômico e político muito frágil. Por essa razão, mais de 15 mil pessoas foram deslocadas para outro países.
Pergunta - O que a sra. acha do uso de aviões para enviar ajuda aos deslocados dentro de Kosovo?
Ogata -
É uma opção. Os exemplo passados tiveram resultados fracos. Outra opção seria ir pela estrada, mas isso supõe que haja segurança para os comboios.
Pergunta - Como a sra. vê o futuro dos refugiados?
Ogata -
De 100 mil refugiados, passamos a 350 mil, depois a 650 mil e logo esse número será de 900 mil. Estou preocupada com os alojamentos onde eles estão sendo abrigados. As tendas não vão resistir ao calor do verão nem aos rigores do inverno. Já devemos pensar agora no que vem depois.
Pergunta - A situação vai piorar?
Ogata -
Temo que sim. Precisamos de campos suplementares.Nossa única escolha é tentar mobilizar grande quantidade de recursos. O mais urgente é deter a ""limpeza étnica".


Tradução de Marcelo Starobinas

Texto Anterior: Fuga de Kosovo: Contagem de refugiados termina só em maio
Próximo Texto: A favor da OTAN: Um tirano belicoso nos obrigou a intervir
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.