São Paulo, Domingo, 25 de Abril de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CONTRA A OTAN
EUA ignoram as ""regras da ordem mundial"

NOAM CHOMSKY

Várias indagações vêm sendo feitas com relação ao bombardeio promovido pela Otan (o que significa principalmente os EUA) em conexão com Kosovo. Eu gostaria de fazer algumas observações gerais, me atendo a fatos que não são objeto de contestação séria.
Há duas questões fundamentais: 1) Quais são as "regras da ordem mundial" aceitáveis e aplicáveis? 2) Como estas e outras considerações se aplicam no caso de Kosovo?
A) Quais são as "regras da ordem mundial" aceitáveis e aplicáveis? Existe um regime de lei internacional e ordem internacional ao qual todos os Estados têm a obrigação moral de se sujeitar, baseado na Carta e nas resoluções subsequentes da ONU e nas decisões da Corte Internacional de Justiça.
Para resumir, a ameaça ou o uso da força é proibido a não ser quando explicitamente autorizado pelo Conselho de Segurança, depois de este constatar que os meios pacíficos falharam, ou em autodefesa contra "ataque armado" (um conceito restrito), enquanto o Conselho de Segurança não toma uma atitude.
B) Como estas e outras considerações se aplicam no caso de Kosovo?
Nos últimos 12 meses vem ocorrendo em Kosovo uma catástrofe atribuível quase inteiramente às forças militares iugoslavas.
Em casos como esses, as forças externas têm três opções possíveis: (1) procurar provocar a escalada da catástrofe, (2) não fazer nada e (3) tentar mitigar a catástrofe.
As escolhas são ilustradas por outros casos contemporâneos. Atenhamo-nos a alguns de escala aproximadamente igual e indaguemo-nos em que Kosovo se encaixa nesse padrão.
Na Colômbia, segundo estimativas do Departamento de Estado, o nível anual de mortes políticas provocadas pelo governo e seus associados paramilitares é mais ou menos equivalente ao de Kosovo.
Ao longo dos anos 90, à medida que a violência veio se intensificando, a Colômbia tornou-se o maior receptor de armas e treinamento norte-americanos no hemisfério ocidental, e essa assistência está aumentando, justificada pelo pretexto da "guerra às drogas", visto como indigno de crédito por quase todos os observadores sérios. Neste caso, a reação dos EUA é a de nº (1): promover a escalada das atrocidades.
No Laos, a cada ano milhares de pessoas, em sua maioria crianças e lavradores pobres, são mortos na planície de Jars, no norte do Laos, palco, aparentemente, dos bombardeios mais pesados de alvos civis já registrados na história, e, pode-se argumentar, o mais cruel: o ataque furioso de Washington contra uma sociedade camponesa pobre guardou pouca relação com suas guerras na região.
Neste caso, a reação dos EUA é a do tipo (2): não fazer nada.
E a reação da mídia e dos comentaristas é manter silêncio, seguindo as normas pelas quais a guerra contra o Laos foi designada uma "guerra secreta".
Kosovo constitui outra ilustração de (1): tentar provocar a escalada da violência, com exatamente essa expectativa.
É muito fácil encontrar exemplos que ilustrem o ponto (3), pelo menos se nos ativermos à retórica oficial. Os EUA escolheram um caminho que provoca a escalada -"previsível"- das atrocidades e da violência.
Um argumento padrão utilizado é que tínhamos a obrigação de fazer alguma coisa -não podíamos simplesmente ficar de lado, deixando que as atrocidades continuassem. Isso nunca é verdade. Uma escolha que sempre existe é a de obedecer ao princípio hipocrático: "Em primeiro lugar, não faça mal". Se você não consegue imaginar nenhum meio de obedecer àquele princípio elementar, então não faça nada. Sempre haverá meios que poderão ser considerados. A diplomacia e as negociações nunca serão esgotadas.
Agora que os pretextos da Guerra Fria perderam sua eficácia, é provável que o direito de "intervenção humanitária" seja evocado com frequência cada vez maior nos próximos anos.
Numa era como essa, talvez seja o caso de ouvir as opiniões de comentaristas altamente respeitados -sem falar na Corte Internacional de Justiça, que tomou uma decisão explícita sobre esse tema, decisão essa que foi rejeitada pelos EUA, de tal modo que nem mesmo seus pontos essenciais foram divulgados.


Tradução de Clara Allain
Noam Chomsky, 71, é linguista e ativista político norte-americano
Texto disponível no website www.zmag.org

Texto Anterior: A favor da OTAN: Um tirano belicoso nos obrigou a intervir
Próximo Texto: Cenários: Saiba o que pode ocorrer
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.