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São Paulo, quinta-feira, 25 de dezembro de 2003

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ANÁLISE

Os EUA querem marginalizar a França

PATRICK JARREAU
DO "LE MONDE", EM WASHINGTON

Embora neguem oficialmente a constatação, Paris e Washington se enfrentam hoje em vários campos que vão além de sua disputa sobre o multilateralismo -que precedeu a Guerra do Iraque. E os EUA buscam reduzir a influência de um país aliado visto como muito difícil, talvez hostil.
Desde a queda do regime de Saddam Hussein, em abril, os dirigentes dos dois países anunciaram diversas vezes que sua disputa acerca da invasão do Iraque tinha sido superada. Porém essas declarações foram contraditas por afirmações ásperas, por um comportamento pouco amistoso, por atitudes de desconfiança e por atos velados de enfrentamento.
Os dirigentes americanos querem vingar-se dos países que a eles se opuseram durante a crise iraquiana? "A resposta é não", disse anteontem um funcionário do Departamento de Estado dos EUA. "A aliança transatlântica é um pilar da política externa americana. A França e a Alemanha fazem parte dessa aliança. Não atacamos pessoas de quem precisamos", acrescentou.
Ao ouvir as palavras dos diplomatas franceses e americanos, as pessoas poderiam pensar que não aconteceu nada entre os dois países neste ano e que, nos últimos dias, não houve nada que justificasse o aumento da tensão entre ambos os Estados. Em 15 de dezembro, dois dias depois da captura de Saddam, George W. Bush até fez comentários positivos sobre a França e a Alemanha: "Faz parte de nossos interesses nacionais trabalhar lado a lado".
No dia seguinte, em Paris, James Baker, ex-secretário de Estado e enviado especial de Bush para cuidar da dívida iraquiana, teve um encontro com o presidente francês, Jacques Chirac, que classificou de "bastante frutífero", enquanto Catherine Colonna, porta-voz da Presidência francesa, ressaltava a importância de "trabalhar lado a lado em prol da reconstrução iraquiana".
A França foi descartada das discussões com a Líbia, comandadas pelos EUA e pelo Reino Unido, que resultaram no anúncio, em 19 de dezembro último, de que o ditador líbio, o coronel Muammar Gaddafi, tinha concordado em abrir mão de suas armas não-convencionais? Do lado americano, diz-se que não se tratava de uma questão "multilateral". Do lado francês, diz-se que as negociações tiveram início porque Trípoli queria pôr fim à disputa gerada pelo atentado a um avião ocorrido sobre Lockerbie, na Escócia (Reino Unido), em 1988.
Gaddafi buscava obter o levantamento das sanções da ONU contra seu país e das sanções impostas pelos EUA contra a Líbia. Além disso, o ditador líbio queria que Washington deixasse de classificar seu país de "protetor de terroristas". Seus interlocutores, nesse caso, só poderiam estar em Londres e em Washington.
Os diplomatas fazem seu trabalho, que, na fase atual, consiste em aparar as arestas da disputa. Eles não negam, porém, que a tendência não é das melhores. A oposição de Chirac a Bush se deu sobre a questão que é considerada a mais importante pelo presidente americano -o Iraque.
O Departamento de Estado tem um modo muito diplomático de tratar a situação, dizendo que a crise iraquiana foi "uma oportunidade para reforçar a aliança transatlântica" e que essa oportunidade "foi perdida" pela França e pela Alemanha.
Walter Russel Mead, especialista em política externa americana do Council on Foreign Relations (EUA), é bem mais claro: "Os franceses eram vistos como aliados difíceis. Mas o país se transformou num opositor ativo". Um deputado francês ressalta que o ex-presidente francês Charles de Gaulle expunha suas diferenças aos americanos, mas "nunca buscava levá-las ao Conselho de Segurança, onde os EUA poderiam ser atacados por outros países".

Cálculo frio
Paradoxalmente, Mead atribui a atitude dos EUA a um cálculo frio, não à emoção. "Não é o ódio que os faz agir desse modo, mas um cálculo político frio. Como a França se opõe aos EUA, é necessário atenuar a influência dos franceses", analisa.
O tom oficial busca, portanto, mostrar calma. Mas, quando há uma questão em que a influência da França está em jogo, o governo americano opta pela opção que tende a reduzir a influência de Paris. A recente viagem do secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, à África e o apoio de Washington aos países europeus contrários à França e à Alemanha se inserem nessa lógica. E, de acordo com Mead, os EUA deverão opor-se aos candidatos franceses a postos importantes em organizações internacionais.
Quando a política dos EUA sobre a reconstrução do Iraque foi posta em xeque, a posição francesa foi reavaliada por observadores e especialistas americanos. Mas, desde a prisão de Saddam, as análises sombrias de Paris perderam importância e, para os americanos, passaram a ser consideradas atitudes antiamericanas.
A questão que ocupa os analistas atualmente é saber se, atacando a França, os EUA visam atingir uma Europa "emancipada demais". Para os franceses, a atitude americana é uma prova da "vontade de hegemonia" dos EUA.


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