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COMENTÁRIO
Um vazio eloquente
MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO
A reconstrução dos Budas de Bamiyan, embora
certamente motivada por boas intenções, resultará em algo completamente diverso do que pretendem seus realizadores. Não
haverá resgate da história destruída pelo regime do Taleban, mas a
fundação de um símbolo para celebrar a nova ordem.
Um monumento representa a
memória coletiva de uma sociedade num determinado período
de tempo. As interpretações sobre
o significado desse monumento
variam conforme essa sociedade
sofre mutações. Ainda assim, sua
base, ou seja, as intenções daqueles que desejavam perpetuar sobretudo uma idéia de poder, é
inalterável e deve ser entendida
antes de mais nada, sob pena de se
distorcer o texto primário que
emana do monumento.
Os Budas do século 21 serão, por
esse motivo, totalmente diferentes dos Budas do século 5º, ainda
que sejam reconstruídos em seus
mínimos detalhes. Serão estátuas
representativas de um esforço para apagar do presente as marcas
de um período obscuro da trajetória da região. Serão, portanto,
um novo monumento, agora a
serviço da memória dos que derrubaram o Taleban e se julgam
com o dever moral de estabelecer
novos padrões de cultura e comportamento, exatamente como fizeram todos os vencedores de todas as guerras da história.
Muitas vezes, porém, a ausência
de um monumento pode ser mais
eloquente do que sua existência.
Os enormes rombos nas rochas
de Bamiyan, onde antes repousavam os Budas, são mais significativos para a reconstituição da trágica história afegã do que a reposição das estátuas por meio de réplicas feitas a partir de sofisticados programas de computador.
Entretanto, numa época em que
tradição e memória importam
muito pouco diante dos privilégios do novo e da ojeriza ao contraditório -revelada sobretudo
no atual embate Bem versus Mal,
a partir do qual o Afeganistão
pós-Taleban está sendo erguido-, não surpreende que a opção por varrer da memória afegã
os traços particulares de sua história, aqueles que lhe conferem
distinção, prevaleça.
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