São Paulo, domingo, 27 de janeiro de 2002

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COMENTÁRIO

Um vazio eloquente

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

A reconstrução dos Budas de Bamiyan, embora certamente motivada por boas intenções, resultará em algo completamente diverso do que pretendem seus realizadores. Não haverá resgate da história destruída pelo regime do Taleban, mas a fundação de um símbolo para celebrar a nova ordem.
Um monumento representa a memória coletiva de uma sociedade num determinado período de tempo. As interpretações sobre o significado desse monumento variam conforme essa sociedade sofre mutações. Ainda assim, sua base, ou seja, as intenções daqueles que desejavam perpetuar sobretudo uma idéia de poder, é inalterável e deve ser entendida antes de mais nada, sob pena de se distorcer o texto primário que emana do monumento.
Os Budas do século 21 serão, por esse motivo, totalmente diferentes dos Budas do século 5º, ainda que sejam reconstruídos em seus mínimos detalhes. Serão estátuas representativas de um esforço para apagar do presente as marcas de um período obscuro da trajetória da região. Serão, portanto, um novo monumento, agora a serviço da memória dos que derrubaram o Taleban e se julgam com o dever moral de estabelecer novos padrões de cultura e comportamento, exatamente como fizeram todos os vencedores de todas as guerras da história.
Muitas vezes, porém, a ausência de um monumento pode ser mais eloquente do que sua existência. Os enormes rombos nas rochas de Bamiyan, onde antes repousavam os Budas, são mais significativos para a reconstituição da trágica história afegã do que a reposição das estátuas por meio de réplicas feitas a partir de sofisticados programas de computador.
Entretanto, numa época em que tradição e memória importam muito pouco diante dos privilégios do novo e da ojeriza ao contraditório -revelada sobretudo no atual embate Bem versus Mal, a partir do qual o Afeganistão pós-Taleban está sendo erguido-, não surpreende que a opção por varrer da memória afegã os traços particulares de sua história, aqueles que lhe conferem distinção, prevaleça.




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