São Paulo, domingo, 27 de julho de 2008

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ARTIGO

A política externa mutante de Barack Obama


Apesar do discurso transformador e da promessa de mudança, planos concretos e histórico do candidato democrata mostram que, na prática, não há ruptura total com modelo vigente


ROBERT DREYFUSS
DA "NATION"

"Vale lembrar que Barack Obama não é um messias", diz Richard Danzig, assessor de segurança nacional do candidato democrata à Casa Branca, em tom de semichacota. Em nenhum outro setor as expectativas quanto a uma possível Presidência de Obama são tão grandes quanto na política externa, em que muitos americanos -e a maior parte do mundo- não vêem a hora de chegar ao fim a abordagem demolidora de George W. Bush. Obama modificará ou inverterá o rumo atual em algumas áreas importantes: ele reduzirá as forças americanas no Iraque; lançará um diálogo com adversários como Irã, Síria e Cuba; fechará Guantánamo; renunciará ao unilateralismo e às guerras preventivas, reconstruirá os laços dos EUA com seus aliados e fará o país assinar o Protocolo de Kyoto para reduzir as emissões de gases.
Já prometeu buscar "um mundo sem armas nucleares".
Em contraste com o rival republicano John McCain, colocará a ameaça do terrorismo numa perspectiva adequada, elevando a importância de outras ameaças à segurança, da pobreza às doenças pandêmicas e ao aquecimento global.
Sob muitos aspectos, porém, parece provável que Obama presida sobre um retorno ao consenso bipartidário que regeu a política externa americana durante a Guerra Fria e os anos 90, atualizado para o mundo pós-11 de Setembro.
Essa conclusão nasce de um exame das opiniões do democrata, além de dezenas de entrevistas com especialistas em política externa -inclusive com o núcleo principal da equipe de Obama-, e de uma revisão de discursos e artigos, como o que ele assinou na "Foreign Affairs" em 2007, e no capítulo "O Mundo para Além de Nossas Fronteiras" de seu livro "A Audácia da Esperança".
Tudo isso sugere que há uma distância entre os discursos inspiradores de Obama e as políticas que ele defende concretamente. "O que estamos vendo até agora é o discurso de que podemos fazer mudanças ousadas em nossa política externa", diz John Cavanagh, diretor do Instituto de Estudos de Política. "Mas, quando ele apresenta detalhes específicos, a coisa não é tão transformadora."
Will Marshall, diretor do Instituto de Política Progressiva do Conselho de Liderança Democrática, direitista, concorda.
"Obama se alinha ao consenso democrata", diz. O veterano ativista e ex-senador estadual da Califórnia Tom Hayden opina: "Na melhor das hipóteses, ele será um gradualista".

Paradoxos
Ao mesmo tempo em que promete encerrar a Guerra do Iraque, Obama diz que vai aumentar a verba do Pentágono, ampliar o Exército, reforçar as Forças Especiais, expandir as agências de inteligência e manter as centenas de bases militares dos EUA pelo mundo.
Ele defende um multilateralismo reforçado que inclui a ampliação da Otan (aliança militar ocidental) e, de acordo com o "Times" de Londres, seus assessores o estão incentivando a convidar o atual secretário da Defesa, Robert Gates, a permanecer no cargo.
Apesar de ser contrário à idéia de os EUA imporem a democracia, Obama propõe um programa abrangente de construção de nações e promoção da democracia, programa este que inclui o reforço do National Endowment for Democracy e a construção de um aparato civil-militar que seria mobilizado para socorrer Estados falidos ou em via de falência na África, Ásia e no Oriente Médio.
Mas com histórico exíguo em política externa, duas perguntas se impõem. Primeiro: é possível deslindar as opiniões de Obama e de seus assessores?
Muitos dos que o cercam podem ser caracterizadas como liberais internacionalistas, veteranos do governo Clinton para os quais o poderio militar dos EUA é fundamental para a segurança do mundo e que não hesitam em defender o emprego do "soft power" e do "hard power", inclusive da força militar, para enfrentar ameaças aos EUA longe de serem imediatas. Os progressistas mais esperançosos confiam no caráter do senador, em seus instintos inatos. Mas uma equipe costuma se calcificar em torno de um candidato ao chegar ao poder.
Em segundo lugar, quanto do que Obama vem dizendo é apenas o que ele acredita que precisa dizer para ser eleito?
É possível que suas posições sobre, por exemplo, a questão israelo-palestina sejam moldadas por sua meta de conquistar os votos dos judeus ou que seu apoio ao aumento dos gastos militares vise combater as acusações de McCain de ser um diletante de espírito conciliador.
Mas muitas das posições de Obama são meticulosamente detalhadas e vão além do necessário para a conveniência política. E, ainda que ele venha adotando tais posições para evitar ataques, isso levanta dúvidas sobre sua disposição em sacrificar princípios.

Intervenções
Obama visualiza um mundo em que os EUA ajudem a derrotar a pobreza e reconhece que restaurar a dignidade e a esperança a populações das partes problemáticas do mundo trará mais segurança. Ao mesmo tempo, alguns de seus discursos retóricos idealistas ecoam os sentimentos de muitos neoconservadores e neoliberais, incluindo uma visão do mundo em tons maniqueístas.
"Rejeito os cínicos que afirmam que este novo século não pode ser mais um em que lideramos o mundo na batalha contra os males imediatos e na promoção do bem último", proclamou Obama em abril de 2007 diante do Conselho de Chicago para Assuntos Mundiais. "Precisamos liderar o mundo."
Seus assessores ressaltam que Obama acredita na interdependência inextricável do mundo pós-Guerra Fria. Com suas raízes quenianas e indonésias, ele pode afirmar com credibilidade que tem uma compreensão inata do ônus da miséria sobre o Terceiro Mundo.
Mas é possível que ele não perceba até que ponto o envolvimento dos EUA no exterior é visto pelos que o recebem como ingerência opressora, mesmo quando bem intencionada.
Ele e seus assessores-chaves adotaram um plano abrangente para promover a democracia, reconstruir Estados falidos e em processo de falência e prestar ajuda a dissidentes e democratas da África e Oriente Médio até a Rússia e a China.
Obama promete "integrar as capacidades civis e militares para promover a democracia e o desenvolvimento globais", incluindo a criação de "Equipes Móveis de Desenvolvimento (MDTs) que reúnam profissionais das Forças Armadas, do Pentágono, do Departamento de Estado e da Usaid, integrando plenamente os esforços em operações de contraterrorismo, construção de Estados e pós-conflito". Visa ainda "criar uma capacidade expedicionária" para agências outras que o Pentágono, como os Departamentos de Estado, Segurança Interna, Justiça e Tesouro.
Indagada sobre que Estados podem estar precisando das atenções de Obama, Susan Rice, ex-funcionária do Departamento de Estado no governo Clinton que assessora o candidato, responde: "A lista é extensa. Poderíamos começar com o sul da Ásia e o Afeganistão, mas também há a Somália, o Iêmen, Quênia e os países do Sahel." E, diz, há países que, embora ainda não se encontrem em processo de falência, têm sociedades civis fracas ou mal formadas. "Em países como a Nigéria, os EUA podem ajudar a construir instituições democráticas, um Parlamento obrigado a prestar mais contas, uma imprensa livre e Justiça civil."
Mesmo em países mais resistentes, como Egito e Rússia, os EUA podem apoiar dissidentes e dar outros passos em favor da democracia, diz Rice. Indagada se a Rússia reagiria favoravelmente a tais esforços, respondeu: "Não. Mas isso não significa que não devamos fazê-lo".
Dúvidas também surgem quanto à atitude de Obama com relação às intervenções humanitárias. Vários de seus assessores, incluindo Rice e Tony Lake, assessor de segurança nacional de Clinton, são partidários inequívocos de intervenções armadas dos EUA em casos de violações graves dos direitos humanos. Em 2006, Rice e Lake escreveram um editorial no "Washington Post" pedindo uma "campanha de bombardeio ou bloqueio naval" unilateral dos EUA contra o Sudão, e até mesmo o envio de forças terrestres ao país, para frear a matança em Darfur. O que isso nos diz em relação ao Zimbábue? Mianmar? Congo?
Rice responde: "Não existe uma resposta pronta à pergunta de quando uma situação atinge um nível de ultraje que justifique uma intervenção". É claro que a ONU e outros organismos internacionais podem não endossar intervenções multilaterais, e, embora Obama não tenha ido tão longe quanto McCain, pedindo a criação de uma Liga de Democracias para driblar a ONU em tais casos, sua campanha estaria discutindo a idéia, segundo fontes.
De fato, com relação ao Departamento da Defesa e aos gastos militares, Obama não fica atrás de McCain. De acordo com Winslow Wheeler, do Centro de Informações sobre a Defesa, durante seus anos no Senado Obama nunca contestou significativamente os projetos sobre gastos militares.
O democrata já deixou claro que, em várias áreas, gostaria de reforçar a capacidade de intervenção dos EUA em todo o mundo. Ele também pretende "recapitalizar nossas forças navais" de modo que os EUA possam patrulhar "pontos de sufocamento" oceânicos para proteger o fornecimento de petróleo e "patrulhar e proteger as águas "marrons" de sistemas fluviais [no exterior] e as águas "verdes" próximas das costas".
Com sua determinação em retirar unidades de combate do Iraque, Obama prometeu reforçar a presença americana no Afeganistão, afirmando que acrescentará pelo menos duas brigadas de combate à força dos EUA/Otan presente nesse país.
Também já declarou que atacaria o Paquistão unilateralmente para eliminar forças ligadas à Al Qaeda, se houvesse dados confiáveis de sua localização.
A equipe de política externa de Obama rejeita de maneira uniforme a idéia de que seja possível reduzir o inchado Orçamento do Pentágono, embora, sem contar com o dinheiro gasto no Iraque e Afeganistão, esse Orçamento já tenha quase dobrado desde 2000 e equivalha aproximadamente aos gastos militares de todos os outros países juntos. "Estamos ou não estamos contando com um papel maior do Pentágono? É claro que estamos", diz Denis McDonough, seu principal assessor em política externa.

Limitações
Os ambiciosos planos de promoção da democracia de Obama e sua atitude de intervenção humanitária, sem falar em sua defesa do reforço contínuo dos recursos militares, levantam a dúvida sobre sua compreensão das restrições políticas e econômicas que os EUA vão enfrentar em anos futuros.
E isso, por sua vez, leva ao Iraque: com a retirada de um número significativo de soldados, os EUA poderão criar algum espaço adicional para ação em outras partes do mundo.
Apesar de ter reafirmado seu plano de retirada, Obama vem deixando propositalmente indefinido o número de soldados que poderia permanecer no país árabe como "força residual". Alguns de seus assessores para o Iraque, como Colin Kahl, do Centro para uma Nova Segurança Americana, "think tank" de centro, já declararam que uma força de até 80 mil militares poderia permanecer por pelo menos alguns anos.
Ao declarar que se reuniria com os líderes do Irã, Obama vem sendo elogiado por exigir um papel central para a diplomacia e as negociações e por apoiar a idéia de que diplomatas às vezes dialogam com adversários e inimigos.
Mas o democrata se nega a excluir a possibilidade de atacar o Irã, caso Teerã leve seu programa nuclear adiante, desafiando a oposição internacional. Mesmo que tenha sido uma concessão à conveniência política, seu discurso de 4 de junho ao Comitê Americano de Assuntos Públicos de Israel (Aipac) impressionou lideranças judaicas de linha-dura.
Seu discurso notavelmente pró-Israel diante do Aipac incluiu a promessa de fornecer US$ 30 bilhões em ajuda, por dez anos, "que não será vinculada a nenhuma outra nação" e que vai "assegurar a vantagem militar qualitativa de Israel".
Entre os assessores de Obama para o Oriente Médio não há nenhum que defenda ações que possam modificar significativamente as posições atuais. Indagado sobre como a política de Obama em relação ao conflito árabe-israelense vai diferir da de McCain e Bush, um assessor sênior para o Oriente Médio do candidato diz que ele "está comprometido com uma maneira muito mais engajada de ajudar Israel e os palestinos a alcançar um acordo".
Além disso, diz o assessor, Obama conversará com a Síria e apoiará as negociações entre Israel e Síria que estão em curso, patrocinadas pelo chanceler da Turquia. Mas ele reiterou o apoio de Obama à resposta israelense desproporcional à incursão do Hizbollah em Israel em meados de 2006, quando os bombardeios israelenses sobre o Líbano mataram até mil civis.

Estatura mundial
Para muitos, o aspecto de uma possível Presidência de Obama que mais suscita esperança é a nova face dos EUA ao mundo. "Isso pode ser um fator capaz de fazer o jogo mudar", diz Derek Chollet, que assessorou o ex-pré-candidato democrata John Edwards. "Obama terá muito prestígio, e possivelmente seu maior desafio será administrar as expectativas que sua eleição vai suscitar."
Joseph Nye, ex-diretor do Conselho de Inteligência National no governo Clinton, diz: "Na Europa existe algo que se aproxima de uma "Obamania".
Os europeus estão muito instigados com a perspectiva de ver Obama na Casa Branca. E isso se aplica mais ainda à África e ao Oriente Médio". E completa: "Acho que Obama pode fazer maravilhas pelo "soft power" [poder político e diplomático de influência] dos EUA".
Na chamada "guerra ao terrorismo", Obama deixa claro que pretende capitalizar em cima dessa boa vontade. "Nos cem primeiros dias de minha administração, vou viajar para um fórum islâmico importante para dar um discurso de redefinição de nossa luta", disse ele.
"Deixarei claro que não estamos em guerra com o islã." É difícil imaginar que McCain, na Presidência, faça algo do tipo.
A boa vontade deve exercer papel importante no modo como os EUA se relacionarão com o mundo, após oito anos do unilateralismo insensato de Bush.
Mas é preciso mais. Resta ver se um governo Obama será capaz de articular um objetivo progressista coerente para a política externa na era pós-Bush.

O jornalista investigativo especializado em política e segurança ROBERT DREYFUSS é colaborador da "The Nation" e autor de "Devil's Game: How the United States Helped Unleash Fundamentalist Islam" (O jogo do diabo: como os EUA ajudaram a liberar o islã fundamentalista)


Tradução de CLARA ALLAIN




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