São Paulo, domingo, 27 de agosto de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

O esgotamento dos "tanques" de idéias conservadoras

Obra de Karl Zinsmeister, novo assessor da Casa Branca, exemplifica desgaste de linha de pensamento que, cultivada por 30 anos, não resiste mais à realidade

THOMAS FRANK
DO "NEW YORK TIMES"

Em seus momentos mais grandiloqüentes, os porta-vozes dos conservadores dirão que a ascendência que os republicanos vêm exercendo há décadas sobre o governo dos Estados Unidos é uma realização intelectual, que o Partido Republicano triunfa por ser "o partido das idéias". E, de fato, ao longo das três últimas décadas surgiram institutos e fundações de inclinação conservadora que acabaram por se transformar em uma poderosa instituição quase acadêmica, com orçamentos milionários e falanges de "pesquisadores seniores" e de "distintos catedráticos".
Enquanto os acadêmicos de verdade se preocupam com questões espinhosas como certeza e equanimidade, os estudiosos que trabalham para o American Enterprise Institute, a Heritage Foundation e o Cato Institute agem com ousadia, por saberem, como afirma um influente texto conservador, que as idéias têm conseqüências. Felizmente, as conseqüências só afetam os outros.
E eis que agora salta ao cenário nacional um certo Karl Zinsmeister, ex-editor da revista oficial do American Enterprise Institute e atualmente principal assessor do presidente para questões de política doméstica. Nos círculos da direita, ele é encarado como um peso pesado intelectual. Mas o que sua carreira realmente nos mostra é a exaustão cada vez mais próxima do sistema intelectual conservador; seu apego desesperançado a clichês poeirentos e cambaleantes; e uma cegueira tão persistente e tão bizarra diante das realidades do conservadorismo no poder que seria possível classificá-la como um caso de deliberada ilusão pessoal, ou, no caso de Zinsmeister, como alucinação.

"Elites"
Comecemos pela infame declaração de Zinsmeister segundo a qual as pessoas de Washington são "seres humanos moralmente repulsivos, trapaceiros e indignos de confiança", uma alegação que ele posteriormente esclareceu afirmando que se referia apenas "à classe privilegiada" da cidade. Haveria justificativa para ler suas palavras como óbvia referência aos lobbies, aos pesquisadores parciais em sua visão e aos congressistas sempre interessados em arrecadar doações de campanha que formam a máquina do Partido Republicano.
Mas basta ler de passagem o conjunto da obra jornalística de Zinsmeister para descobrir que só os liberais, com parcas exceções, são capazes de repugnância, instabilidade e participação em elites privilegiadas. Essa última qualidade é um ponto que Zinsmeister enfatiza vigorosamente em seus escritos. Ao longo dos anos, os editorais dele retornam vezes sem conta às "elites" e seus nefandos hábitos: "Elites educacionais", "elites da costa leste" e "elite dos professores/advogados/jornalistas/ativistas", todas elas fora de sintonia com o bom povo dos EUA.
Vejam, eu defendo vigorosamente a crítica às elites, começando pelo antigo empregador de Zinsmeister, o American Enterprise Institute, há muito a voz mais confiável do dinheiro das grandes empresas. Os dirigentes do instituto na prática comandaram a campanha presidencial de Barry Goldwater, em 1964, e foram os seus profundos pensadores que, depois de encontrarem espaço no governo Bush, sonharam a guerra no Iraque. Hoje, as fileiras da organização representam uma lista abrangente do poderio conservador em Washington.
Seria possível alegar que o instituto é uma lição viva sobre a capacidade de distorcer o debate que as elites e as classes superiores ostentam. Mas isso implicaria que temos classes sociais e, como Zinsmeister escreveu um dia, a idéia de que "existem classes distintas nos EUA é dúbia".
Então, por que Zinsmeister desperdiçou tanta tinta em seus ataques às elites e às atividades delas? É aí que entra o mágico conceito do mercado, a fonte do poder das grandes empresas e de tudo mais que existe de sagrado. O funcionamento do livre mercado "é democracia", escreve Zinsmeister, "com pluralidades de agentes econômicos exercendo seu direito de voto". A democracia em si, no entanto, caso tome a forma de um Estado dotado de poder regulatório, "é monarquismo, pois permite que um punhado de pessoas na corte dite normas às massas".
Se vocês forem capazes de engolir essa idéia, começa a fazer sentido o fato de que os liberais formam uma elite, o fato de que a economia de exploração da mão-de-obra instalada nas ilhas Marianas existe por vontade de um povo humilde que deseja escapar às garras de um governo central opressivo (argumento que a revista de Zinsmeister defendeu em 1997), e o fato de que o editor da revista de um instituto de pesquisa muito bem dotado de verbas tem todo o direito de aconselhar às vítimas de deslocamento econômico que parem de se queixar.
Mas engolir dose exagerada dessas idéias pode fazer com o todo-poderoso mercado comece a dissolver o senso moral dos leitores. Talvez até seja possível que você reduza o Todo-Poderoso a um slogan publicitário. Em uma edição de 2003, a revista de Zinsmeister tinha por manchete as palavras "Com Deus as coisas vão melhor", reaproveitando um slogan da Coca-Cola de maneira a permitir que o Rei dos Reis ocupasse momentaneamente o trono da Marca entre as Marcas. Um escritor melhor poderia ter proposto "eu gostaria de comprar um Deus para o mundo", mas Zinsmeister talvez possa oferecer esse lema ao novo patrão.


Thomas Frank é autor de "What's the Matter with Kansas? How Conservatives Won the Heart of America"


Texto Anterior: Nš de imigrantes explode e provoca reação de britânicos
Próximo Texto: "Conde" tira campanha venezuelana do sério
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.