São Paulo, segunda-feira, 27 de outubro de 2008

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ENTREVISTA DA 2ª

WILLIAM BURNS

Teerã tem direito de ter seu programa nuclear civil

Terceiro nome da diplomacia americana diz que EUA erraram no Iraque, defende Irã e afirma que Geórgia acirrou crise no Cáucaso

"O IRÃ tem direito a um programa civil de energia nuclear". A frase não partiu de um aliado de Teerã, mas do número três do Departamento de Estado dos EUA: o subsecretário para Assuntos Políticos, William Burns. Destoando da artilharia verbal de Washington, Burns explica que o erro do país não é desenvolver centrais atômicas, mas fazê-lo sem transparência nem amparo das potências signatárias do Tratado de Não-Proliferação. Representante da retórica mais conciliadora da diplomacia americana, ele defende que o extremismo seja combatido com desenvolvimento econômico e social e cita a luta contra a Aids na África como o maior trunfo externo de Bush.

SAMY ADGHIRNI
DA REPORTAGEM LOCAL

Essas foram algumas das idéias defendidas por Burns em entrevista à Folha, concedida numa caminhonete blindada que levava o diplomata do aeroporto de Congonhas até a residência oficial do Consulado-Geral dos EUA em São Paulo.
Burns também destoou do discurso tradicional ao criticar a Geórgia -aliada da Casa Branca- e lamentou que o atual governo americano não tenha obtido um acordo de paz entre israelenses e palestinos.
Leia os principais trechos da entrevista, feita no último dia 17, quando ele visitou o Brasil em meio a esforços da Casa Branca por uma "transição de governo suave" para a região.

 

FOLHA - O que mudou depois que sr. participou das conversas em Genebra com o Irã, em julho?
WILLIAM BURNS
- Naquela ocasião, nós [EUA, França, Reino Unido, Alemanha, China e Rússia] expusemos detalhadamente nossa oferta ao regime iraniano: um pacote generoso de incentivos, no qual deixamos claro que reconhecemos o direito de o Irã ter um programa nuclear civil -até oferecemos reatores de água leve e assistência para que o país desenvolva seu programa civil.
Mas o Irã precisa cumprir com suas obrigações. A AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) fez perguntas legítimas e claras ao regime iraniano, às quais ele não respondeu. Se Teerã aceitar o que propusemos, ganhará muito em termos econômicos e de reconhecimento externo. Se não, aumentaremos a pressão e as sanções econômicas. Continuaremos buscando uma solução diplomática, mas depende de como os iranianos responderem -até agora suas respostas não têm sido satisfatórias.

FOLHA - Como está o projeto de os EUA terem representação em Teerã?
BURNS
- Já temos uma seção de interesses em Teerã, administrada pela Embaixada da Suíça [os dois países romperam em 1979, após islâmicos radicais manterem reféns por 444 dias na Embaixada dos EUA em Teerã]. O que cogitamos é enviar alguns diplomatas americanos para esse escritório. A secretária [de Estado] Condoleezza Rice continua achando a idéia interessante a longo prazo. Se avançarmos neste caminho, teremos a chance de alcançar a sociedade iraniana, independentemente do governo.

FOLHA - Preocupa os EUA o fato de alguns países sul-americanos, como o Brasil, estreitarem laços com o Irã?
BURNS
- O Brasil é perfeitamente capaz de fazer suas próprias escolhas diplomáticas, e nós as respeitamos. De qualquer forma, nossa atenção vai além do que o Irã ou a Rússia fazem com a Venezuela. Embora acompanhemos esses processos, nossa prioridade é promover neste hemisfério uma agenda em favor do desenvolvimento social e econômico.

FOLHA - O que o sr. responde aos que acusam o governo Bush de ter transformado o mundo em um lugar mais perigoso do que era logo depois de 11 de Setembro?
BURNS
- Não contem comigo para dizer que os EUA não cometeram erros. Erramos, sim, principalmente no planejamento da Guerra do Iraque e na projeção de cenário pós-derrubada de Saddam Hussein. O mundo era um lugar perigoso antes [das invasões] do Afeganistão e do Iraque [em 2001 e 2003] e continua um lugar perigoso. Mas a situação iraquiana traz um sinal de esperança, é um país que aos poucos ressurge com estabilidade.
No Afeganistão, o regime Taleban e a Al Qaeda representavam perigo e nós sofremos o 11 de Setembro - e muitos outros países foram atingidos. A iniciativa que tomamos em 2001 [de derrubar o Taleban] era absolutamente necessária.

FOLHA - Qual deve ser a prioridade do próximo presidente americano em relação a Iraque e Afeganistão?
BURNS
- O Afeganistão carece de recursos naturais, e os desafios vão bem além da segurança. É preciso criar um caminho de avanço econômico e governança. Já no Iraque houve progressos significativos em termos de segurança -embora a situação ainda esteja longe do ideal- e isso permitiu abrir espaço para revitalizar a economia. A sociedade iraquiana desfruta de enormes quantidades de recursos petroleiros, algo crucial rumo à reconciliação.

FOLHA - Até que ponto a guerra na Geórgia afetou as relações entre EUA e Rússia?
BURNS
- Não é segredo que estamos num período difícil de nossa relação com a Rússia, e isso vale para muitos países europeus. Trata-se na realidade de um caso clássico de relação complicada entre grandes potências: haverá áreas nas quais vamos competir e outras nas quais vamos trabalhar juntos.

FOLHA - Há quem diga que conflitos eram previsíveis entre Rússia e ex-repúblicas soviéticas...
BURNS
- As tensões já eram óbvias, e atuamos com os russos e georgianos para amenizá-las, ao lado dos nossos aliados europeus. A mensagem que havíamos enviado ao governo georgiano era clara: não recorrer à força em nenhuma hipótese para assegurar sua soberania sobre a Ossétia do Sul e a Abkházia [as regiões separatistas pivô do conflito entre Tbilisi e Moscou em agosto]. O fato de o governo georgiano ter feito justamente isso [invadir a Ossétia] foi uma decisão cega. Mas isso não justifica a resposta desproporcional de Moscou. Desde então, há dificuldades com a Rússia. Porém, é um país que não podemos nos dar o luxo de ignorar. Há muitas áreas nas quais precisamos trabalhar juntos, afinal EUA e Rússia temos um papel-chave de liderança, sobretudo em matéria de armamentos nucleares. É preciso que caminhemos juntos para dar o exemplo de como administramos nossos arsenais e como os reduzimos.

FOLHA - Qual é o maior sucesso do governo Bush em política externa?
BURNS
- Eu poria no topo da lista os esforços históricos para combater o HIV na África e em outros lugares. Isso exigiu enormes recursos do governo americano, e acho que o próximo presidente deverá seguir nesse caminho. Quando se fala em segurança, é preciso ter em mente uma definição ampla. É claro que é preciso combater grupos extremistas violentos. Mas os problemas como a pobreza e as doenças devem ser encarados com a mesma ênfase. O subdesenvolvimento social e econômico cria um terreno propício para o extremismo.

FOLHA - E a a maior frustração?
BURNS
- Ver que, apesar de todo o esforço da secretária Rice, não houve maiores avanços em busca de um acordo de paz entre israelenses e palestinos, embora tenha havido progressos. Mas chegaremos lá.

FOLHA - Como a crise global vai afetar as relações internacionais?
BURNS
- Afetará economias do mundo inteiro e poderá ter um impacto negativo na ajuda internacional -ou seja, quanto um país como os EUA pode continuar fornecendo em ajuda externa. Mas acho que oportunidades existem até mesmo em tempos de crises. Uma delas é o lembrete de que todos dependemos uns dos outros, e a economia global é hoje tão interconectada que precisamos reforçar nossa ação conjunta, não só no G8, mas também com potências emergentes como Brasil, Índia e China.
A crise também pode nos levar a uma reflexão sobre as instituições de Bretton Woods [FMI e Banco Mundial], que deveriam ser atualizadas e modernizadas.


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