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ANÁLISE
Heterodoxia sai com vantagem para o segundo turno
CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A BUENOS AIRES
A heterodoxia derrotou a ortodoxia, no primeiro turno da eleição presidencial argentina, e tende a repetir o resultado no turno
final. Os três candidatos que se
opõem ao modelo chamado neoliberal, aplicado na Argentina durante os anos 90, deveriam obter
cerca de 50% dos sufrágios contra
cerca de 40% dos dois candidatos
favoritos dos mercados e que não
escondem que aplicariam a receita ortodoxa.
Os heterodoxos são Néstor
Kirchner, Adolfo Rodríguez Saá
(o presidente que decretou a moratória da dívida externa) e Elisa
"Lilita" Carrió. Os liberais são o
ex-presidente Carlos Menem e o
efêmero ministro da Economia
Ricardo López Murphy. É claro
que seria precipitado deduzir que,
no segundo turno, os votos de Rodríguez Saá e Carrió irão automaticamente para Kirchner.
Mas Carrió já avisou que em
Menem não vota, embora diga
também que não vai fazer "alianças partidocráticas". Quer manter
uma certa pureza em seu movimento, na pretensão de transformá-lo no principal do país a médio prazo.
Como a deputada foi catapultada à fama como presidente de
uma comissão parlamentar que
investigou corrupção no governo
Menem, a lógica manda supor
que seus eleitores a seguirão no
rechaço a Menem.
Exatamente pela questão ética, é
igualmente razoável supor que os
eleitores de López Murphy terão
dificuldades em votar em Menem, embora teoricamente seja o
candidato cujas idéias para a economia mais se aproximem das de
López Murphy.
O ex-ministro apresentou-se
como candidato de mãos limpas,
o que é impensável para Menem,
quando se sabe que 23 altos funcionários de seus dois governos
estão enfrentando processos judiciais exatamente por corrupção,
para não lembrar que o próprio
ex-presidente esteve sob prisão
domiciliar.
As suspeitas sobre corrupção
(ou, em alguns setores, a certeza)
é o grande problema que Menem
enfrentará no segundo turno. Foi
por conta dela que todas as pesquisas revelaram imensa rejeição
ao ex-presidente.
Kirchner, ao contrário, não tem
um único caso na Justiça.
Mesmo assim, também ao governador de Santa Cruz se dirigiu
o grito "que se vayan", que esteve
na origem da eleição de ontem.
Afinal, embora não tenha tido
presença nacional forte até agora,
está no seu terceiro mandato como governador.
Fica claro, portanto, que o grito
"que se vayan" morreu na garganta, pelo menos provisoriamente. De todo modo, o "que se
vayan" de 2001 ressurgiu ontem
em pelo menos três momentos e
locais diferentes. Foram micro-protestos, feitos mais de insultos
do que de organização.
Serviram no entanto como lembrança de que a relativa calmaria
dos últimos meses é ilusória, porque permanece elevado e latente o
descontentamento dos argentinos com os seus políticos.
Sem entusiasmo
Prova-o enquete feita pelo matutino "Clarín" em seu endereço
eletrônico: apenas 42,8% dos que
responderam disseram que seu
entusiasmo pelo pleito aumentou
com o tempo. Os outros 57,2% ou
nunca tiveram entusiasmo
(30,5%) ou não o sentiram aumentar na reta final (26,7%).
A falta de entusiasmo ajuda a
entender uma inédita fragmentação do voto. Para comparação:
ontem, os dois primeiros colocados, somados, tinham algo em
torno de 46% dos votos. Em todas
as quatro eleições anteriores, pós-redemocratização, essa cifra era
superada por apenas um dos candidatos, obviamente eleito já no
primeiro turno.
Raúl Alfonsín, em 1983, levantou 51,7%, Menem ganhou duas
vezes com 47,5% (1989) e 49,8%
(1995) e Fernando de la Rúa recebeu 48,4% em 1999.
É claro que, no segundo turno, o
eleito acabará recebendo a maioria absoluta ou relativa dos votos,
porque esse é o objetivo do modelo de dois turnos.
Mas, aí, tratar-se-á de escolher o
"mal menor" para pelo menos
75% dos argentinos, porcentagem que, no primeiro turno, não
escolheu nem Menem nem
Kirchner.
Se se considerar que Alfonsín e
De la Rúa, com um ponto de partida melhor, assim mesmo não
conseguiram completar seus
mandatos, a pulverização do voto
não é exatamente o melhor dos
augúrios para o presidente ao
qual caberá tirar a Argentina da
maior crise de sua história.
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