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São Paulo, segunda-feira, 28 de abril de 2003

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ANÁLISE

Heterodoxia sai com vantagem para o segundo turno

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A BUENOS AIRES

A heterodoxia derrotou a ortodoxia, no primeiro turno da eleição presidencial argentina, e tende a repetir o resultado no turno final. Os três candidatos que se opõem ao modelo chamado neoliberal, aplicado na Argentina durante os anos 90, deveriam obter cerca de 50% dos sufrágios contra cerca de 40% dos dois candidatos favoritos dos mercados e que não escondem que aplicariam a receita ortodoxa.
Os heterodoxos são Néstor Kirchner, Adolfo Rodríguez Saá (o presidente que decretou a moratória da dívida externa) e Elisa "Lilita" Carrió. Os liberais são o ex-presidente Carlos Menem e o efêmero ministro da Economia Ricardo López Murphy. É claro que seria precipitado deduzir que, no segundo turno, os votos de Rodríguez Saá e Carrió irão automaticamente para Kirchner.
Mas Carrió já avisou que em Menem não vota, embora diga também que não vai fazer "alianças partidocráticas". Quer manter uma certa pureza em seu movimento, na pretensão de transformá-lo no principal do país a médio prazo.
Como a deputada foi catapultada à fama como presidente de uma comissão parlamentar que investigou corrupção no governo Menem, a lógica manda supor que seus eleitores a seguirão no rechaço a Menem.
Exatamente pela questão ética, é igualmente razoável supor que os eleitores de López Murphy terão dificuldades em votar em Menem, embora teoricamente seja o candidato cujas idéias para a economia mais se aproximem das de López Murphy.
O ex-ministro apresentou-se como candidato de mãos limpas, o que é impensável para Menem, quando se sabe que 23 altos funcionários de seus dois governos estão enfrentando processos judiciais exatamente por corrupção, para não lembrar que o próprio ex-presidente esteve sob prisão domiciliar.
As suspeitas sobre corrupção (ou, em alguns setores, a certeza) é o grande problema que Menem enfrentará no segundo turno. Foi por conta dela que todas as pesquisas revelaram imensa rejeição ao ex-presidente.
Kirchner, ao contrário, não tem um único caso na Justiça.
Mesmo assim, também ao governador de Santa Cruz se dirigiu o grito "que se vayan", que esteve na origem da eleição de ontem.
Afinal, embora não tenha tido presença nacional forte até agora, está no seu terceiro mandato como governador.
Fica claro, portanto, que o grito "que se vayan" morreu na garganta, pelo menos provisoriamente. De todo modo, o "que se vayan" de 2001 ressurgiu ontem em pelo menos três momentos e locais diferentes. Foram micro-protestos, feitos mais de insultos do que de organização.
Serviram no entanto como lembrança de que a relativa calmaria dos últimos meses é ilusória, porque permanece elevado e latente o descontentamento dos argentinos com os seus políticos.

Sem entusiasmo
Prova-o enquete feita pelo matutino "Clarín" em seu endereço eletrônico: apenas 42,8% dos que responderam disseram que seu entusiasmo pelo pleito aumentou com o tempo. Os outros 57,2% ou nunca tiveram entusiasmo (30,5%) ou não o sentiram aumentar na reta final (26,7%).
A falta de entusiasmo ajuda a entender uma inédita fragmentação do voto. Para comparação: ontem, os dois primeiros colocados, somados, tinham algo em torno de 46% dos votos. Em todas as quatro eleições anteriores, pós-redemocratização, essa cifra era superada por apenas um dos candidatos, obviamente eleito já no primeiro turno.
Raúl Alfonsín, em 1983, levantou 51,7%, Menem ganhou duas vezes com 47,5% (1989) e 49,8% (1995) e Fernando de la Rúa recebeu 48,4% em 1999.
É claro que, no segundo turno, o eleito acabará recebendo a maioria absoluta ou relativa dos votos, porque esse é o objetivo do modelo de dois turnos.
Mas, aí, tratar-se-á de escolher o "mal menor" para pelo menos 75% dos argentinos, porcentagem que, no primeiro turno, não escolheu nem Menem nem Kirchner.
Se se considerar que Alfonsín e De la Rúa, com um ponto de partida melhor, assim mesmo não conseguiram completar seus mandatos, a pulverização do voto não é exatamente o melhor dos augúrios para o presidente ao qual caberá tirar a Argentina da maior crise de sua história.


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