São Paulo, domingo, 29 de agosto de 2010

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ANÁLISE

O Big Brother dos homens no buraco, direto de Copiapó

ZÉLIA LEAL ADGHIRNI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A tragédia dos mineiros do Chile provoca imediatamente uma alegoria com o filme de Billy Wilder, a "Montanha dos Sete Abutres" (1951).
O filme conta a história de um índio entalado numa montanha. Charles Tatum (Kirk Douglas), repórter veterano e cafajeste, resolve manipular o fato para se promover. Corrompe as autoridades locais e decide deixar o sujeito enterrado mais tempo para fazer durar a notícia.
Enquanto isso, em volta da montanha concentram-se milhares de pessoas, arma-se um parque de diversões, o comércio floresce, os jornais aumentam as tiragens, o jornalista inescrupuloso aumenta o seu passe e comanda o espetáculo. Até que tudo termina em tragédia.
Nascia assim o primeiro Big Brother midiático, na pré-história da internet e da TV a cabo. A notícia-espetáculo. Já estava lá o olho mágico da mídia, onipresente, onisciente e onipotente, como os atributos de Deus. Para vigiar o indivíduo, dominá-lo ou fazer dele o protagonista de um espetáculo.
O termo big brother tem inspiração no Grande Irmão da obra de George Orwell, "1984", para criticar regimes totalitários em que pessoas eram vigidas por câmeras.
Na acepção atual, o termo tem mais a ver com a exposição consentida das pessoas em busca de celebridade.
Rompe-se o limite entre esfera pública e privada. Os franceses usam o termo "extimité", trazido de Lacan, segundo o qual todas as pessoas aspiram à exposição da intimidade. O que explicaria o sucesso dos programas de televisão tipo "big brother".
Como no filme de Wilder, o espetáculo está armado no Chile. Graças às novas tecnologias, milhões de espectadores podem seguir ao vivo o drama dos mineiros e suas famílias acampadas, transmitido pelos canais de televisão mais diversos, da CNN à Al Jazeera. As teletelas de Orwell são imagens em tempo real nas TVs, blogs, sites...
A mídia conhece cada um pelo nome: Mario, 63 anos, o líder; Vitor, o fumante bem humorado; Luiz, com torcida organizada, toca cumbia no lado de fora. É o segredo do jornalismo como entretenimento: interesse humano, apologia do sofrimento, estrutura seriada e eventual interferência do jornalista na construção da notícia.
O titulo original do filme era "Ace in the hole" ("Ás na manga"). Wilder talvez quisesse apostar na esperança de redenção. Mas a expressão também significa "o cara no buraco".


ZÉLIA LEAL ADGHIRNI é pesquisadora do CNPq e chefe do Departamento de Jornalismo da Universidade de Brasília


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