São Paulo, sexta-feira, 29 de outubro de 2004

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O IMPÉRIO VOTA - ON THE ROAD


Na cidade de Indio, no meio de uma reserva indígena, descendentes de povos nativos exploram jogos de azar sem ter de pagar imposto estadual

Na próxima terça-feira, eleitor da Califórnia terá de se decidir sobre quase cem propostas, como a que institui fundo para pesquisa de células-tronco



No deserto, um programa que os índios não querem ver acabar

SÉRGIO DÁVILA
EM INDIO (CALIFÓRNIA)

Indio, no meio do deserto californiano, tem talvez o nome mais redundante e ao mesmo tempo mais apropriado para uma cidade desde que a paulista Praia Grande foi batizada. Foi fundada por índios, fica no meio de uma reserva indígena e é controlada por índios. Mais especificamente os cabazon, da nação cahuilla, descendentes do chefe Cabazon, assim batizado pelos conquistadores espanhóis, seus inimigos.
O inimigo dos cabazon hoje é o governo estadual, de Arnold Schwarzenegger. Nas eleições de terça-feira, além de presidente e outros cargos eletivos, o californiano terá de votar em 16 propostas governamentais, que vão de se a polícia deve manter um arquivo com o DNA de todas as pessoas que forem presas à criação de um fundo estadual de fomento à pesquisa com células-tronco.
Entre elas está a Proposta 70. Incluída na cédula pelo lobby indígena, mantém a isenção do imposto estadual para nações de índios que exploram o jogo em suas terras e aumenta o jogo de azar permitido. Hoje roletas são proibidas, por exemplo -mesmo assim, só os cassinos tribais californianos geram um volume anual de até US$ 6 bilhões. O governador é contra, acha que todas as empresas devem pagar imposto; não é o que querem os cabazon.
Nos últimos dias, um comitê pró-jogo indígena colocou no ar nas emissoras locais comercial exaltando vantagens da proposta também para não-índios. Quem estrela é a atriz decadente Stefanie Powers, conhecida dos trintões e quarentões como a mulher do "Casal 20". Batizada Stefania Zofia Federkiewicz, é figura freqüente na vizinha Palm Springs e se diz "amiga dos índios". "Por séculos roubamos tudo o que eles tinham. Por que não os deixamos prosperar um pouco?"
E prosperar é o que eles fazem, conforme atesta o movimento do Fantasy Springs nesta manhã. Esse cassino é a jóia de Indio -bem, a competição não é tão forte. Tirando um badalado festival na vizinha Coachella, a cidade é conhecida por seu concurso anual de tamales, espécie de pamonha mexicana, só que salgada. Plantado na beira da rodovia Interestadual 10, não tem mais vagas no estacionamento, a maioria dos freqüentadores, de presumíveis aposentados, fazia uma fezinha matinal nos caça-níqueis e até numa concorrida mesa de pôquer com aposta de US$ 300.
É o caso de Lou, veterano de guerra que não dá sobrenome nem idade nem se deixa fotografar. Vestido à Unabomber, não votou ainda, mas tende a escolher Bush "pelo que está fazendo no Iraque. Não sei se Kerry teria a mesma força". Sabe da Proposta 70? "Não tenho idéia, você abre a cédula e tem um monte de opções." São quase cem itens que o eleitor tem de escolher na Califórnia, no que os críticos do processo chamam de "democratice".
Posição diferente tem Odilia Bocanegra, 57, moradora da região desde os 14 anos. "Se é bom para os índios e para os cassinos...", diz. A aposentada é uma das centenas de milhares de pessoas que votaram antecipadamente nestas eleições -requisitaram a cédula pelo correio, preencheram e despacharam. "Escolhi Kerry, porque o outro só cuida dos ricos, mas não me lembro das propostas. Eram tantas."

Última pizza
De volta à estrada, uma placa avisa: "Depois daqui, a próxima chance de comer pizza só em Phoenix". Passando Indio, é quase só deserto até a capital do Arizona. As placas se tornam cada vez mais ameaçadoras: último posto em 100 milhas! E até: "Picanha's Grill - Já provou o legítimo rodízio brasileiro?"
Califórnia vai ficando para trás. Os programas de entrevista de rádio deixam de ser francamente democratas (o último trazia uma voz imitando George W. Bush dizendo: "O quê? A eleição é terça? Vai estragar minha pescaria em Crawford...") e guinam à direita. Último sinal de que estávamos no Estado cuja capital cultural é Hollywood: aqui, a I-10 é rebatizada de Sonny Bono Highway, em homenagem ao ex-senador e ex-parceiro de Cher. Em que outro lugar poderia haver o cruzamento da Sonny Bono Highway com a Bob Hope Drive, como acontece em Moreno Valley?
No carro, a voz monocórdica do Never Lost: "Phoenix está a 419 km". Começo a perder a paciência com meu HAL rodoviário...


A coluna "On the road" volta na edição de domingo.


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